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Turismo em Ouro Preto resgata passado "esquecido" dos negros escravizados

Praça Tiradentes, em Ouro Preto, que hoje também quer contar a história dos escravos - Getty Images
Praça Tiradentes, em Ouro Preto, que hoje também quer contar a história dos escravos
Imagem: Getty Images

Vinicius Pereira

Colaboração para Nossa

02/10/2021 04h00

Quem anda pelas ruas de pedras centenárias das cidades históricas de Minas Gerais pode não notar uma grande diferença no local. Não que os casarões, as vias estreitas ou as igrejas brilhantes de ouro do século 18 tenham mudado. O que ficou diferente na última década é a forma como a história desses locais é contada.

Para além da herança portuguesa ou das benesses feitas nas cidades por uma elite de comerciantes ricos ou membros da Igreja Católica, guias da região agora focam também na herança de pessoas negras escravizadas que, antes, eram simplesmente esquecidas.

O local, que foi berço do desenvolvimento brasileiro no século 18 em meio a corrida por ouro e pedras preciosas, também recebeu boa parte dos dois milhões de cativos africanos enviados à força ao Brasil.

Calçada feita por escravos da Fazenda Boa Esperança, na descida da Serra dos Mascates entre Congonhas e Belo Vale - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Calçada feita por escravos da Fazenda Boa Esperança, na descida da Serra dos Mascates entre Congonhas e Belo Vale
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Apesar da quantidade de homens e mulheres trazidos à região, pouco se fala sobre a contribuição dos africanos para a construção dessas cidades, que mantêm preservadas casarões e igrejas, mas poucas senzalas.

Houve um apagamento dessa memória. E isso acaba por influenciar a história como se o Brasil fosse construído exclusivamente por pessoas brancas e europeias, como se os demais fossem menos importantes.

Quando você olha a história da escravidão, você vê que, na realidade, essas pessoas escravizadas são protagonistas dessa construção", afirma Laurentino Gomes, sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura, e autor de dois livros sobre o tema.

Resgate pelo turismo

E é justamente esta parte escondida da história das cidades que vem sendo o foco com o aumento da demanda de turistas interessados em outro olhar, além do preparo de novos guias, que fazem questão de passar adiante detalhes sobre esse passado esquecido do Brasil.

Teto da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na cidade de Mariana, MG. A igreja, no período colonial, era a única em que os escravos negros poderiam frequentar e, sua arquitetura, tem formato arredondado, o que a diferenciava das demais. A cidade é tombada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e é Monumento Nacional - Rubens Chaves/Folhapress - Rubens Chaves/Folhapress
Teto da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na cidade de Mariana, MG. A igreja, no período colonial, era a única em que os escravos negros poderiam frequentar.
Imagem: Rubens Chaves/Folhapress

De acordo com Luana Melo, professora do Departamento de Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), essa nova forma de olhar sobre as histórias voltadas aos turistas é uma tendência nas cidades históricas e deve continuar a crescer.

"Hoje, as pessoas querem ver outra história, buscam outra narrativa e é importante trazê-las para os passeios turísticos como forma de entendermos a complexidade do nosso País e de nossa história", diz.

"É uma complexidade que foi tirada por simplificações que buscavam uma grande narrativa nacional, mas nossa identidade é múltipla e a importância dos guias incorporarem essa narrativa é trazer outros protagonismos, dando de verdade uma real do que é a história do Brasil de fato", completa Melo.

Para ela, profissionais do turismo já conseguem oferecer aos turistas que visitam a região outros olhares, mesmo que sejam sobre os mesmos pontos já abordados.

"Você tem roteiros mostrando a presença negra na região. Antes, em um chafariz, o guia mostraria que a obra era algo colonial, barroco ou europeu. Mas já há estudos que mostram que os chafarizes eram espaços de sociabilidade africana, por exemplo.

Então, você já encontra guias para mostrar uma proposta para essas cidades mostrando igrejas, como a de Santa Efigênia, por exemplo, que tem símbolos africanos lá dentro", conta.

Paisagem de Ouro Preto. Ao fundo, a Igreja de Santa Efigênia - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Paisagem de Ouro Preto. Ao fundo, a Igreja de Santa Efigênia
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Contribuição africana em foco

Quem passa por Ouro Preto, por exemplo, se depara com quase vinte igrejas possíveis de visitação, todas com suas histórias sobre quem financiou sua construção e quem foram seus arquitetos e artistas que produziram obras no estilo barroco mineiro.

Além dessas igrejas e dos casarões históricos, os museus, como o da Inconfidência, tentam preservar os laços do Brasil enquanto colônia de Portugal e sua elite de comerciantes e religiosos que regiam a sociedade da época.

Local onde prendiam negros escravizados em Ouro Preto - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Argolas em local onde prendiam negros escravizados em Mariana
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Já as contribuições de africanos escravizados, que vão desde a tecnologia implementada para a retirada de ouro e pedras preciosas, passando por traços da religiosidade e contribuições culturais, têm pouco espaço dentro do circuito de turismo da cidade.

Português sabia plantar açúcar, quem entendia de mineração eram os africanos", conta Laurentino Gomes.

Em duas minas antigas da cidade, a Du Veloso e a do Chico Rei, há uma mudança significativa no discurso. Não se ouve mais quanto os portugueses contribuíram por ali ou como as pedras dali retiradas serviram para manter o Império ou pagar a Independência do Brasil.

Ao invés disso, os guias locais mostram como os africanos cederam tecnologia para a extração de ouro, além, é claro, do sofrimento dessas pessoas escravizadas em trabalhos extremamente insalubres.

Imersão no passado

"Aqui nós retratamos o cotidiano das pessoas escravizadas", diz o guia conhecido por Beto, que recebe turistas na mina do Chico Rei, um personagem que, no folclore, seria um rei que teria sido escravizado e depois, já no Brasil, ajudara os portugueses a encontrar ouro na região.

Guia e repórter na entrada da mina do Chico Rei - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Guia e repórter na entrada da mina do Chico Rei
Imagem: Arquivo pessoal

Na apresentação, ele mostra o peso das correntes, como eram estreitas as passagens dentro do local, que às vezes fazem com que o turista tenha que quase deitar no chão, o calor, o barulho quase que insuportável de ferramentas trabalhando, e o pó dentro dos buracos.

Dessa forma, o visitante consegue ter a mínima ideia de como era infernal um trabalho como aquele.

Além da representação do sofrimento negro no século 18, o turista entende alguns outros conceitos e gírias que são utilizados até hoje, como o do "bucho cheio", que era buracos nas paredes em que os escravos precisavam encher com ouro para receber a alimentação, por exemplo.

Conflito de gerações atrapalha

Mas, apesar desse novo olhar, ao andar pelas ruas da cidade, poucos guias se mostram dispostos a se adaptar às novas demandas, principalmente entre os mais velhos, em um claro conflito geracional.

"Um guia mais velho, de forma geral, tem dificuldade de se atualizar, de buscar uma nova narrativa. Isso não quer dizer, porém, que eles também não busquem novas informações para transmitir aos turistas", disse Luana Melo, da UFOP.

Museu Casa dos Contos e o local onde funcionava a cozinha dos escravos no período colonial. - Douglas Cometti/Folhapress - Douglas Cometti/Folhapress
Museu Casa dos Contos e o local onde funcionava a cozinha dos escravos no período colonial.
Imagem: Douglas Cometti/Folhapress

Para Eude Barbosa, guia profissional na região há cerca de quinze anos, a mudança está pouco ligada ao entendimento desses atores em relação a importância do passado e da contribuição dos negros na cidade, mas sim a um aumento da exploração da atividade econômica.

"Você tem um processo de exploração do turismo das minas que levam a trazer os mais escravos à tona. Não é uma exaltação da figura do negro em si. Há alguns efeitos da militância, sim, mas não acho que a auto consciência negra, falando de descendentes, tenha surgido", afirma.

"A desconstrução que foi feita no psicológico de escravizados, que formaram a população negra e mestiça, é de auto negação de si mesmo.

Na maioria das vezes, até um guia negro vai te levar em algum lugar e não vai contar a história com esse viés. É esse o ponto que ainda persiste por aqui", conclui.