Expedição do ex-presidente Roosevelt no Brasil foi marcada por perrengues
"Será como um passeio na 5ª Avenida", descreveu Theodore Roosevelt, em um jantar com a família em sua casa de verão em Long Island, quando anunciou sua intenção de explorar a Amazônia.
O diálogo pode até soar como uma das adaptações históricas do roteiro de "O Hóspede Americano", minissérie em exibição, atualmente, na HBO Max e na HBO, baseada na histórica viagem do ex-presidente dos Estados Unidos no Brasil, guiado pelo militar Cândido Rondon.
Mas, de longe, a famosa avenida de Nova York, nem qualquer outra via comercial do mundo, seria capaz de preparar alguém que estivesse disposto a entrar em uma das florestas mais intratáveis do planeta.
A "Expedição Científica Rondon-Roosevelt" aconteceu entre dezembro de 1913 e abril do ano seguinte com o objetivo de mapear o rio da Dúvida, curso d'água de extensão desconhecida, entre Rondônia e o Amazonas, e descoberto pelo próprio Rondon, em 1909.
Ignorávamos se dentro de uma semana estaríamos no Ji-Paraná, se em seis no rio Madeira ou em que lugar iríamos parar dali a três meses.", escreveu Roosevelt em seu diário publicado no Brasil como "Nas Selvas do Brasil".
Com cinco meses de duração, dos quais passariam 48 dias sem ver um único ser humano, a expedição tinha tudo para dar errado.
Os perrengues do presidente
Corredeiras mortais, dias carrancudos que apagavam estradas, homens abatidos pela falta de comida e pelas constantes chuvas que mofavam tudo, ataques de animais selvagens e índios a lançar flechas embebidas em veneno.
Derrotado nas eleições de 1912 e com a saúde comprometida, o 26º presidente norte-americano confessaria que viajar por florestas tropicais com bagagem reduzida e em plena temporada de chuvas era um trabalho insano.
Isso porque nem chegamos na parte dos ataques de malária, das roupas e chapéus comidos por insetos e do acidente em uma pedra afiada, que causaria uma infecção que obrigou Roosevelt a ser operado ali mesmo, em plena Amazônia.
Criada e dirigida por Bruno Barreto, a minissérie reconta a viagem em um percurso não cronológico dos fatos, a partir de acontecimentos políticos que antecederam a expedição, inclusive a tumultuada campanha eleitoral que quase tirou a vida de Roosevelt e seus esforços na criação de parques nacionais nos Estados Unidos.
Como lembra Larry Rohter, autor de "Rondon: uma biografia", a energia do ex-presidente dos primeiros dias de viagem "se tornava uma mera sombra do homem orgulhoso e confiante" que, por diversas vezes, chegou a sugerir que a comitiva partisse sem ele e o deixasse morrer ali mesmo.
Para o experiente Rondon, o "Domador dos Sertões", aquilo não era um safári, mas uma autêntica expedição científica.
Em um dos momentos mais tensos, o remador Simplício foi tragado por um redomoinho no rio e nunca mais seria encontrado.
Impossibilitado de seguir viagem pelo rio, devido às violentas quedas d'água, o grupo era obrigado a arrastar, durante dias, pesadas canoas selva adentro. Com homens fracos e doentes, a alimentação limitada era outra preocupação, que em certos momentos se resumia a carne de macaco e sopa de tartaruga.
Para se ter ideia do ritmo da viagem, ao completarem três semanas no Dúvida, os exploradores tinham percorrido cerca de 40 quilômetros de rio. A passos lentos, a viagem seguia sem que ninguém pudesse saber quantas semanas faltavam até algum sinal de civilização.
O Brasil que Roosevelt viu
Antes de se meter em selva hostil, o explorador Roosevelt esteve em São Paulo, onde se encantou com uma visita guiada por Vital Brasil no Instituto Butantan.
No Brasil interior, o grupo seguiu por terra e se abasteceu em fazendas pantaneiras. Foi ali que o estrangeiro provou dois pratos nacionais que o encantaram: "uma sopa grossa feita de arroz e galinha" e "carne de vaca cortada em pedaços pequenos com um molho simples".
Em outras palavras, Roosevelt caíra de boca na canja e na carne de panela.
Para Rondon, a maior ameaça na Amazônia eram os insetos, de mosquitos a agressivas formigas venenosas.
Mas além de sentir na pele aquela multidão "que pica, ferroa, persegue e devora", Roosevelt caçaria onças, se encantaria com animais como tuiuiús ("imponentes em sua dignidade majestosa") e tamanduás-bandeiras ("o gigante comedor de formigas"), e teria encontros com "os peixes mais ferozes do universo": as piranhas.
Nessa mesma viagem, Rondon e o jovem Kermit descobriram um pequeno afluente do rio da Dúvida, que seria batizado de rio Kermit, em homenagem ao filho do ex-presidente, e passariam também pela Cachoeira Salto Belo, em Campo Novo dos Parecis (MT), onde Rondon "mandou colocar uns bancos, dando àquele local perdido um aspecto interessante de turismo", como contaria o pai do jovem Roosevelt.
Naquele mesmo local, em 2009, o brasileiro Pedro Oliva quebraria o recorde mundial na categoria "caiaque extremo", descendo em menos de 3 segundos aquela queda de quase 40 metros de altura.
A duas horas dali, subindo o rio Papagaio, fica outra parada que também encantou o ex-presidente.
Localizada até hoje em terras indígenas, o Salto Utiariti tem quedas de 85 (imponentes) metros de altura, cuja "grandiosidade que sentimos em Salto Belo estava muito aquém da beleza e majestade de Utiariti", revelaria Roosevelt.
Como nasce uma expedição
De um lado, um ex-presidente conhecido por seu gosto pelo conhecimento científico e pela aventura em safáris de caça na África. Do outro, um descendente de indígenas, conhecido como um dos mais importantes exploradores do Brasil em terras esquecidas do país.
Convidado por governos sul-americanos para uma série de conferências no continente, Theodore Roosevelt achou que aquela era uma oportunidade para se aventurar em terras amazônicas.
O estrangeiro aventureiro queria navegar um já explorado rio Tapajós em busca de exemplares da fauna local para o acervo do Museu de História Natural de Nova York, mas seria convencido pelo então ministro brasileiro das Relações Exteriores, Lauro Müller, a acompanhar Cândido Rondon e seus homens na descoberta da foz do rio da Dúvida.
Porém, antes de encontrar Rondon na fronteira brasileira com o Paraguai, Roosevelt passou primeiro pela Argentina, onde conheceu ninguém menos do que o Dr. Francisco P. Moreno, o experiente explorador que dá nome a um dos atrativos naturais mais famosos da Patagônia, o glacial Perito Moreno.
Desde as caçadas na savana africana, uma das maiores preocupações de Roosevelt era não parecer um "turista de guia de viagem", como lembra o biógrafo Larry Rohter. E publicaria mais tarde "Nas Selvas do Brasil", um relato com descrições detalhadas para quem não é iniciado no mundo científico.
Porém, a todo momento, seu escrito parece pretender reforçar a ideia estereotipada de áreas selvagens abaixo do Equador.
Diferente do misterioso Coronel Fawcett, que na década seguinte recusaria apoio logístico do Brasil para explorar a Amazônia em busca de uma cidade perdida, antes de sumir para sempre, Roosevelt achou que o convite daria um "maior valor científico" à viagem.
Os escalados para a aventura no "mato grosso" do oeste brasileiro foram seu secretário Frank Harper e o filho Kermit Roosevelt, um jovem de 24 anos formado em Harvard que vivia no Brasil como engenheiro em ferrovias do interior paulista.
O grupo era formado também por dois cientistas indicados pelo Museu Americano de História Natural de Nova York (o ornitólogo George K. Cherrie e o especialista em mamíferos, Leo E. Miller) e o padre John Augustine Zahm, quem dera a ideia de exploração na América do Sul.
Com questionáveis conhecimentos sobre organização de viagens daquele tipo, Zahm levaria também um vendedor de artigos esportivos de Nova York, especializado em expedições no... Ártico. Mais tarde, já em território amazônico, o padre seria convidado por Roosevelt a abandonar a expedição, após solicitar que fosse carregado em uma padiola pelos índios Parecí.
Com o lema "Morrer se for preciso, matar nunca", Cândido Rondon, que empresta seu nome para o estado de Rondônia, era conhecido pela abordagem não-violenta com indígenas brasileiros.
E, assim, Rondon foi mapeando o Brasil e os próprios brasileiros.
Enquanto alguns geógrafos acreditavam que o Dúvida desembocava no Ji-Paraná ou no Tapajós, Rondon sempre acreditou que a foz daquele rio perdido fosse no Madeira.
No final de abril de 1914, na confluência dos rios Castanho e Aripuanã, o Brasil ficaria sabendo que o experiente Rondon tinha razão. O país "ganhava" mais um rio. E o "hóspede americano", um rio inteiro em sua homenagem: o Roosevelt.
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