Topo

Viajante de lugares remotos conta como é visitar o mais novo país do mundo

O fotógrafo em uma das tribos que conheceu no interior do Sudão do Sul - Arquivo pessoal
O fotógrafo em uma das tribos que conheceu no interior do Sudão do Sul
Imagem: Arquivo pessoal

Marcel Vincenti

Colaboração para Nossa

17/10/2021 04h00

O fotógrafo alemão Michael Runkel (@michaelrunkelphoto), de 52 anos, é uma das pessoas mais viajadas do mundo.

Com trabalhos realizados para veículos como a "National Geographic Traveller" e "The New York Times", ele já esteve em todos os países do globo e se especializou em explorar lugares remotos e perigosos como a costa da Somália, o interior do Afeganistão e as profundezas do Iraque.

Porém, poucos destinos foram tão difíceis para Michael desbravar como o Sudão do Sul, que conquistou sua independência do Sudão em 2011 e é considerado a nação mais nova do planeta com amplo reconhecimento da comunidade internacional.

O alemão passou 12 dias no país africano neste ano, com o objetivo de fotografar diferentes tribos locais — e, nesta jornada, enfrentou um território abalado por contínuas guerras, com parca infraestrutura e cenários propícios para grandes perrengues.

 Michael com os membros da escolta armada que o acompanharam em regiões do Sudão do Sul - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Michael com os membros da escolta armada que o acompanhou em regiões do Sudão do Sul
Imagem: Arquivo pessoal

E a experiência de viagem começou logo após o desembarque no aeroporto que serve a cidade de Juba, capital do Sudão do Sul.

"O terminal do aeroporto ainda é muito pequeno e quase não tem ar-condicionado. No dia em que cheguei, a temperatura estava em 42 graus. Além do teste negativo para covid-19 obrigatório, os oficiais de segurança são obsessivos com equipamentos de fotografia. Eles reviraram minhas malas e olharam cada uma das minhas câmeras", explica.

Antes da viagem, eu já sabia que não seria possível levar um drone, pois este tipo de equipamento é totalmente proibido por lá. Eu poderia ser preso se achassem um drone na minha bagagem"

Aeroporto de Juba, a capital do Sudão do Sul - Getty Images - Getty Images
Aeroporto de Juba, a capital do Sudão do Sul
Imagem: Getty Images

Esta atmosfera de paranoia existe no país muito por causa da guerra civil que assolou o Sudão do Sul após sua independência — um conflito armado alimentado por disputas de poder entre líderes políticos do recém-nascido Estado soberano. Lá, estrangeiros com câmeras podem ser vistos como potenciais espiões a serviço de algum grupo político local ou inimigo estrangeiro.

E as preocupações não paravam por aí: no Sudão do Sul, o alemão esteve frequentemente acompanhado por escolta armada, visto que o país ainda é um lugar sob tensão bélica.

Da capital para o interior

Com mais de meio milhão de habitantes, a cidade de Juba é um local sem muitos atrativos. "É um dos poucos lugares do Sudão do Sul com real estrutura urbana e vias pavimentadas", diz ele.

Mas não é recomendado tirar fotos de nada, pois você pode ter problemas com a polícia"

Soldado fazendo a guarda: preocupação com segurança é um dos desafios nas viagens pelo país - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Soldado fazendo a guarda: preocupação com segurança é um dos desafios nas viagens pelo país
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Os grandes objetivos do alemão, entretanto, estavam fora da cidade grande: em remotas áreas tribais que, além do aspecto cultural, oferecem maior facilidade para colocar as câmeras para funcionar.

Após uma noite em um hotel na capital, ele voltou ao aeroporto para voar rumo à região de Equatória Oriental, para entrar em contato com tribos que vivem nesta zona do Sudão do Sul.

Mas, neste deslocamento, aconteceu mais uma situação curiosa.

"Cheguei ao aeroporto e, com outros passageiros, peguei uma van que cruzou uma pista com aviões de ajuda humanitária para nos levar até perto da nossa aeronave. O nosso avião era muito pequeno e começou a ser carregado sem nenhum tipo de verificação de peso. Ninguém via quantos quilos de malas e cargas estavam sendo colocados lá dentro. E, depois do embarque, havia três passageiros sentados em assentos de duas pessoas. A regra era não ter regra", conta.

Michael sobreviveu ao voo e, ao desembarcar no seu destino, teve que encarar deslocamentos terrestres desafiadores, frequentemente protegido por escolta armada.

Estrada no Sudão do Sul

Nossa

"Quando você sai de Juba para ir ao interior, vê que nada ainda está funcionando", conta ele, dizendo que algumas das principais estradas do país são apenas vias de terra cheias de buracos e trechos alagados, onde rebanhos em movimento costumam dividir espaço com caminhões atolados.

"Ao viajar por estas estradas, fiquei impressionado ao ver que o Sudão do Sul ainda é um território sem plantações, apesar de ser banhado por rio. Parece que, lá, nada é cultivado para alimentar as pessoas", diz.

E, de fato, muitos dos alimentos consumidos no país são importados de nações vizinhas, como Uganda e Etiópia. É uma situação insana"

Cenário captado por Michael no interior do Sudão do Sul - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cenário captado por Michael no interior do Sudão do Sul
Imagem: Arquivo pessoal

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 60% da população do país sofre atualmente de insegurança alimentar.

Encontro com as tribos

O esforço de Michael para transitar no Sudão do Sul o levou até diversas comunidades tribais que existem por lá.

Dormindo em acampamentos durante a viagem pelo interior do país, ele visitou povos de costumes únicos, como os Mundari, os Lotuko e os Toposa, em experiências realmente autênticas.

Selfie com umas das tribos que Michael visitou no Sudão do Sul - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Selfie com umas das tribos que Michael visitou no Sudão do Sul
Imagem: Arquivo pessoal

Muitos deles têm vidas muito parecidas com o que ocorria há centenas de anos. São culturas, de certa maneira, intocadas e de costumes extremamente interessantes. A única diferença é que alguns deles hoje carregam Kalashnikovs"

"Os Mundari, por exemplo, têm crenças animistas e vivem lado a lado com seus bovinos, que são seu sustento", explica. "Já os Toposa, quando jovens, fazem cortes em padrões simétricos em seu corpo, incluindo o rosto". As cicatrizes que surgem daí fazem parte da identidade visual deste povo.

Em muitas comunidades não há dinheiro: o comércio é feito por escambo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Em muitas comunidades não há dinheiro: o comércio é feito por escambo
Imagem: Arquivo pessoal

E muitas destas comunidades sequer usam dinheiro. "Eles sobrevivem com a troca de comida e animais", conta, ressaltando também a dificuldade da vida nestes locais.

São pessoas muito pobres, que têm que enfrentar uma realidade muito dura. E isso apesar de o Sudão do Sul ter petróleo. Mas o dinheiro não chega até as comunidades"

Michael visitou a região para conhecer as tribos e fazer imagens para meios internacionais - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Michael visitou a região para conhecer as tribos e fazer imagens para meios internacionais
Imagem: Arquivo pessoal

Michael não se viu no meio de nenhum conflito armado durante sua jornada pelo Sudão do Sul, mas acha difícil que o governo do mais novo país do mundo consiga criar um senso de identidade nacional entre toda sua população.

"O Sudão do Sul está fragmentado em sociedades tribais, que ainda entram em conflitos armados umas com as outras. Lá, não há identidade nacional, mas identidades tribais".

Para ver as fotos que Michael tirou no Sudão do Sul e em suas incontáveis viagens pelo mundo, acesse: www.michaelrunkel.com