Conheça os truques de marketing das cervejas mais tradicionais do mundo
No cada vez mais diversificado e segmentado mercado de cervejas, algumas marcas precisam se desdobrar no marketing para conquistar a atenção da clientela. As mais alcoólicas, as mais amargas, as mais exclusivas, as que recorrem às fontes de água mais puras e por aí vai.
E também as mais antigas. Como em todo o universo de bebidas, tradição é algo que vende muito. Inclusive em países onde se imagina que tradição é praticamente o nome do meio de todo mundo ligado a cerveja.
"Cervejarias de marca tentam se diferenciar da cerveja barata nos supermercados e justificar seus preços mais altos: quanto mais velha, melhor", diz uma reportagem do jornal "Die Zeit", da Alemanha.
Hoje, vemos marcas tradicionais, não só da Alemanha como também da Bélgica, estamparem, orgulhosas, anos longínquos em rótulos, tampinhas, canecas, pôsteres, camisetas, porta-copos e afins. Mas nem sempre aquele ano impresso significa que tal marca começou a ser feita em mil-duzentos-e-tralalá. Na verdade, quanto mais antigo, mais difícil de se comprovar que tal marca é tão medieval assim quanto diz.
Em geral, o ano indica mais a origem de tal tradição cervejeira de determinada cidade ou o registro mais antigo de alguma receita, e não quando aquela marca de fato surgiu. Mas, ainda que elas não sejam tão antigas quanto fazem parecer nos rótulos, suas histórias não deixam de ser curiosas, daquelas que merecem mais uma rodada de canecas. Conheça algumas.
Weihenstephan, 1040
A autointitulada cervejaria mais velha do mundo ainda em funcionamento tem uma história enevoada e turva como as suas tulipas cheias de weizenbier. Ela fica em uma colina onde funcionava uma abadia beneditina, nos arredores de Munique. Os monges faziam cerveja ali desde 1040, que é a data estampada nos rótulos e peças publicitárias.
Mas, segundo a Sociedade para a História da Cerveja (GGB, na sigla em alemão), uma entidade dedicada a preservar a saga milenar da bebida, essa história de 1040 é baseada em um documento forjado somente no século 17. O certificado de confirmação mais antigo é de 1675, de acordo com um membro da GGB, Jörg Spengler, citado pelo jornal "Die Zeit".
Além disso, a Weihenstephan é, há mais de 200 anos, uma empresa estatal, gerida pelo governo da Baviera. A abadia foi dissolvida no processo de secularização da Alemanha, no século 19 — o mesmo que tomou a Weltenburg, que produzia cerveja desde 1050 e que, hoje, também alega ser a mais velha do mundo.
Por outro lado, apesar da falta de documentos que atestem a idade com exatidão com exatidão, é possível que a Weihenstephan, uma das marcas mais reconhecidas da Alemanha, tenha raízes cervejeiras ainda mais antigas.
"Registros fiscais indicam produção de cerveja já no século 8, permitindo-nos rastrear a fabricação até os primeiros mosteiros da Baviera, embora as operações possam não ter sido contínuas ou em grande escala", diz a "Encyclopedia of Monasticism" ("Enciclopédia do monaquismo", sem edição brasileira).
Leffe, 1240
Em 1240, os monges premonstratenses, da Ordem de São Norberto, começaram a produzir cerveja na abadia de Nossa Senhora de Leffe, em Dinant, no sul da Bélgica.
A ordem religiosa gozou períodos de paz e prosperidade por um bom tempo, até que uma enchente destruiu o templo em 1460. Seis anos depois, a abadia e boa parte da cidade foram incendiadas em uma guerra entre os duques que comandavam a região. Peste, fome e novas batalhas devastaram Dinant nos séculos seguintes, com apenas alguns anos de respiro.
As guerras decorrentes da Revolução Francesa, que levaram o caos a outros pontos da Europa além da própria França, no fim do século 18, chegaram a Dinant. A abadia foi abandonada e a cervejaria, destruída.
Somente em 1929 o prédio foi reconstruído, mais uma vez. Já a tradição cervejeira foi retomada apenas em 1952, e longe da abadia. A bebida passou a ser produzida com um parceiro de outra cidade. Hoje, a construção, estampada no rótulo da Leffe, sedia um museu dedicado à marca, que surgiu, efetivamente, há 69 anos.
Löwenbräu, 1383
No site oficial dessa cervejaria de Munique, consta que em 1524 há uma menção a um cervejeiro situado à rua Löwengrube, 17, hoje no centro antigo da cidade. Já o nome Löwenbräu aparece apenas em 1746 nos registros locais.
A história do "desde 1383" estampado no rótulo se refere a uma descoberta de um jornalista, que encontrou em antigos livros de impostos um mestre-cervejeiro que trabalhou no mesmo endereço naquele ano. Segundo Spengler, isso foi confirmado na tese de doutorado de um certo Hermann Dihm, que era, convenientemente, genro do então diretor-geral da Löwenbräu.
Nem há menção a isso no site da cervejaria, mas o rótulo a vende como pelo menos 140 anos mais antiga.
Spaten, 1397
Mais um caso de uma cervejaria de Munique em que a tradição local se impõe à marca, mesmo que precise atropelar alguns detalhes. Em 1397, um sujeito chamado Hans Welser adquiriu a licença e começou a produzir cerveja na rua Neuhauser, também no hoje centro artigo da cidade. Mais de 200 anos depois, em 1622, Georg Spät, dono de uma cervejaria chamada Unterspaten, comprou a fábrica.
No século 19, ela mudou de donos de novo: Gabriel Sedlmayr, mestre-cervejeiro da corte, assumiu o controle e, inspirado pela Revolução Industrial, que já influenciava a produção de cerveja na Inglaterra, introduziu uma série de modernidades na Baviera, como o uso de termômetros. Seus filhos ampliaram a empresa, que mudou de endereço e se tornou a maior cervejaria de Munique.
O baque da Segunda Guerra foi tremendo para as cervejarias bávaras, que perderam muito mercado internacional após o conflito. Em 1997, a Spaten se uniu à concorrente Löwenbräu e, em 2003, o grupo (que incluía também a Franziskaner) foi adquirido pela Interbrew, a antecessora da AB Inbev.
O site "Oktoberfest Guide", especializado na grande festa cervejeira de Munique, se refere à Spaten como uma "outrora influente cervejaria, que se credita ter introduzido o estilo Munich Helles em 1894, mas que hoje não é mais do que uma marca regional da maior companhia do mundo, que obviamente não sabe o que fazer com ela. Há quem diga que a Oktoberfest é a única razão para a Spaten ainda existir".
Talvez isso mude. Em agosto, a Ambev apresentou a Spaten ao público brasileiro, enaltecendo a tal origem em 1397, apesar de ela se referir mais à tradição cervejeira da cidade do que à marca em si.
Hoegaarden, 1445
A vila de Hoegaarden, em Flandres, no centro da Bélgica, era conhecida na Idade Média por suas cervejas brancas de trigo (witbier). No século 19, ela chegou a ter 13 cervejarias. Mas as transformações na indústria e na sociedade, como a popularização das pilsen, caíram como uma bomba. Na década de 1960, já não havia ninguém fazendo witbier ali.
Então um homem chamado Pierre Celis decidiu ressuscitar a antiga receita, cujos registros mais antigos seriam de 1445. Seguiu assim por 20 anos, até que um incêndio destruiu suas instalações e, sem seguro, ele precisou vender a cervejaria para a Interbrew.
Celis se mudou para os EUA, onde continuou fazendo cervejas. Já a Hoegaarden, uma marca com apenas algumas décadas de existência, se tornaria uma das principais, e mais tradicionais, do portfólio da AB Inbev.
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