Entregador paulista pedala mais de 5,7 mil quilômetros de São Paulo ao Acre
Nos últimos anos, o entregador Fernando dos Santos (@ciclovivencia), 30, esteve entre Parada de Taipas, o bairro mais ao norte de São Paulo, e a avenida Paulista. Diariamente, pedalou quase 20 quilômetros para chegar no trabalho, encarou o caos da maior urbe do continente e bateu muita boca com motorista que ainda insiste em parar sobre ciclovias.
Mas seu maior desafio acaba de ser concluído. Dos 100 dias de viagem, de agosto a novembro deste ano, esse paulista de Arujá esteve mais da metade do tempo sobre o selim de uma bicicleta para encarar os 5.730 quilômetros de pedal, entre São Paulo e Rio Branco, no Acre.
"Eu não tinha noção de que era capaz de fazer isso. Me sinto muito mais forte" comemora Fernando, em entrevista para Nossa.
E haja força (na panturrilha e na alma) para encarar sozinho estradas fantasmas, sentir o bafo quente de imensas carretas de açaí passando rente à bicicleta e acampar em posto de gasolina.
Negro e tatuado, o preconceito, porém, foi a maior dificuldade que Fernando sentiu em todo seu "longão", como ciclistas chamam os treinos de longas distâncias.
"Por conta desse estereótipo, muita gente ficava com medo de me ajudar. Eu sempre tinha que explicar meu objetivo", lamenta esse ciclista, relembrando o trecho de Humaitá a Porto Velho em que servidores de um posto de vigilância sanitária fizeram uma longa entrevista antes de ajudá-lo com o pneu furado da bicicleta.
De volta para São Paulo, na semana passada, o ônibus em que viajava foi abordado pela Polícia Rodoviária, em Capixaba, no Acre. Assim como informou à reportagem, Fernando foi o único passageiro a ser revistado.
Tiraram minha bike para fora, ficaram perguntando o que eu estava fazendo e como eu fazia para me manter na viagem. Além disso, questionaram se eu já tinha sido preso ou se portava drogas e armas. Não me parece o tipo de pergunta que fazem para todos", completa.
Em Jaci Paraná, distrito de Porto Velho (RO), Fernando foi abordado em outra blitz policial. "Pegaram meu documento, revistaram mochila, perguntaram o que eu estava fazendo e pediram para mostrar fotos da bicicleta em que eu viajava" descreve.
O roteiro
Foram 10 divisas de estados. Fernando pedalou pelo litoral até a Bahia, onde tomou uma rota interior, e de lá seguiu rumo ao Piauí, passando pelo Maranhão para, 600 quilômetros depois, chegar em Belém.
Da capital paraense, viajou até Tailândia, onde trocou os mil quilômetros seguintes de pedal por uma viagem de ônibus até Santarém, a mais de 24 horas dali.
Depois de tanto tempo pedalando, desde São Paulo, eu não ia aguentar ficar cinco dias dentro de um barco, dormindo em uma rede, para ir até Manaus", justifica o ciclista.
Em Santarém, no encontro entre os rios Tapajós e Amazonas, Fernando ainda tomou um barco até a capital do Amazonas, uma viagem de dois dias pelo segundo maior curso de água do planeta.
Dali para frente, ninguém sabe, ninguém viu.
Só ele sabe o que foi pedalar na BR-319, mais conhecida como a "Estrada Fantasma" ou, se você preferir, "Rodovia das Onças". Abandonada e, em boa parte, sem asfalto, essa via de quase 900 quilômetros rasga a Floresta Amazônica, ligando Manaus a Porto Velho, em Rondônia.'
"Foi como pedalar no vazio. Mas foi o melhor trecho da viagem, onde tive maior contato com a natureza", lembra Fernando que, para encarar esse desafio, carregou oito litros de água e comida para cinco dias.
O ciclista viu tartarugas, araras e tucanos cruzarem seu caminho, mas o maior temor foi chegar na placa em que se lia "Toca da Onça".
Com cerca de 100 quilômetros de extensão, esse é considerado o pior trecho de toda a BR-319, um lamaçal deslizante que chega a isolar viajantes por dias com seus atoleiros que impedem veículos de seguir viagem.
É bem inóspito. Em um dos trechos cheguei a ver uma placa que indicava que o próximo posto [de gasolina] estava a 572 quilômetros dali", conta o ciclista.
Assim como ele mesmo avisa, o asfalto na BR-319 acaba no km 198 e só volta a dar as caras no km 629.
Mais perrengues
Em média, Fernando pedalava 100 quilômetros por dia e só costumava parar quando encontrava um lugar seguro para passar a noite, geralmente, em postos de gasolina ou na beira da estrada, onde montava a barraca e armava sua cozinha portátil com um fogareiro e uma panela.
"Eu gosto de pedalar em rodovias, de viver na beira de BRs. Não tenho interesse pelas cidades grandes" confessa o ciclista, que comeu "muito cuscus, macarrão e sopa instantânea".
Perrengues não faltaram, como o mal-estar causado por algo que comeu na estrada e a queda no Maranhão, à noite, que o obrigou a pegar carona com um motorista de guincho até Itapecuru Mirim, a 40 quilômetros do acidente.
Outra dificuldade foi a saudade.
"Em todas as outras viagens, eu estava sempre acompanhado de amigos, mas dessa vez fiquei muito tempo sozinho. A internet nessas horas não substitui", analisa esse ciclista que, em 2017, foi de São Paulo para a Bahia; e, em 2019, pedalou com a namorada por 9 meses, da Bahia até o Maranhão, em uma bicicleta sem marcha.
Filho de uma cozinheira e de um motoboy, Fernando saiu de São Paulo com R$ 2 mil que levantou fazendo entregas e contou com o apoio de uma rede virtual que se mobilizou para que ele seguisse viagem, como a venda de camisetas e bonés personalizados no perfil do seu projeto pessoal de cicloviagem.
Para quem trabalhou na rua em pleno auge da pandemia, em 2020, "tocando muita campainha e pegando em cartão de crédito", pedalar nesse período de distanciamento foi a menor das preocupações.
"Na estrada é mais fácil ficar isolado, você só fica no meio da multidão se quiser. Eu montava minha barraca, pegava minha comida e ia comer em um canto", lembra o viajante.
Em um dos últimos posts na internet, antes do início dessa viagem, no dia 1º de agosto, Fernando publicou uma foto sua com a legenda 'nois" vale o que tem', com uma caixa de entrega nas costas e outra na garupa da bicicleta.
E, quase 6 mil quilôemtros depois, o que ele tem agora é a experiência de uma de suas viagens mais marcantes em toda a sua "vida loka" de ciclista e motoboy.
Cheguei até aqui com as próprias pernas. No que depender de mim, posso cruzar o mundo inteiro. Isso ficou mais claro depois dessa viagem", conclui.
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