Além das casas de 1 euro, brasileiros compram imóveis "pechincha" na Itália
No verão de 1893, a italiana Chiara di Rosa chegou ao Brasil ao lado do marido e de seis filhos pequenos. O menor, Domenico, tinha apenas 8 meses. Mais de um século depois, é a vez dos seus descendentes brasileiros retornarem à Itália.
A nutricionista Soraia Carelli, 49 anos, bisneta de Chiara e neta de Domenico, descobriu no ano passado as casas valendo 1 euro em Fabbriche di Vergemoli, um vilarejo na Toscana. Não pensou duas vezes em garantir a sua.
Mas era tarde demais. Todas as propriedades pelo preço de um cafezinho haviam sido vendidas.
Mesmo assim, ela não desistiu. Começou uma busca em sites de imobiliárias até se apaixonar por um imóvel do século 19. Fechou o negócio sem titubear. "A minha esposa comprou uma casa pelo WhatsApp", brinca o marido de Soraia, o médico Tasso Carelli, 57 anos.
O imóvel custou muito mais que 1 euro. O casal pagou 40 mil euros pela propriedade. Mesmo assim, o valor foi bem menor do que realmente vale. Ela é uma das chamadas casas de oportunidade, por serem vendidas por um preço moderado.
O brasileiro Douglas Roque, 49 anos, empresário na Toscana, explica como funciona a compra desses imóveis:
Muitos italianos herdam as casas e acumulam até 4 moradias fechadas. Após a pandemia, algumas pessoas decidiram abrir mão de uma dessas propriedades. Elas negociam um valor abaixo do mercado. Assim conseguem vender rapidamente"
As casas de oportunidade variam entre 15 e 80 mil euros. Não há desconto fixo para cada imóvel. "As propriedades têm as suas particularidades. O valor da casa depende de muitos fatores como a localização, se está próxima de um centro comercial e se pega sol", explica Douglas. "Já conseguimos diminuir até 70% do valor real de uma casa."
Ajuda do governo
A propriedade de Soraia é maior do que ela imaginava. As imagens do site da imobiliária mostravam apenas uma casa. No entanto, o imóvel de 4 quartos possui 220 m², um galpão de 70 m², um bosque e até um riacho.
Com um terreno desse tamanho, a nutricionista tinha medo do imóvel não se enquadrar no chamado SuperBonus 110%. No ano passado, a Itália criou um incentivo fiscal para estimular a economia. O decreto vale para diversos tipos de obras, dentre elas reformas em algumas casas antigas. Os proprietários dos imóveis podem realizar alguns tipos de renovações com um desconto fiscal de 110%.
O preço convidativo das casas de oportunidade atrai os brasileiros. Mas quem dá o empurrão para as pessoas fecharem o negócio é o próprio governo italiano.
A dedução fiscal torna as casas mais seguras e sustentáveis e inclui reformas e restauração das fachadas originais, sistemas de eficiência energética e prevenção contra terremotos.
Ela cobre até 98% da obra. Não vale para portas internas, louças e metais de pias. Os itens extras custam em média 2 mil euros. O valor pode variar dependendo do tamanho da casa.
"No fim das contas, descobrimos que a nossa propriedade se encaixa no SuperBonus 110%. A casa foi realmente um achado", conta Soraia, que não faz ideia o quanto vai investir a mais após a reforma com a dedução fiscal.
As filhas Rebeca e Heloisa, de 24 e 16 anos, respectivamente, também estão animadas com a mudança. Rebeca pensa em fazer mestrado em Relações Internacionais, e Heloisa irá concluir o ensino médio na Itália.
Soraia e Tasso estão validando os seus diplomas no Ministério da Saúde em Roma. Mas estão empolgados mesmo com os planos de transformar o imóvel em uma pousada e spa com alimentação vegetariana.
"Nos identificamos demais com a cultura italiana, o idioma e as paisagens. Parece até uma memória genética", conta Soraia. E complementa:
Para homenagear a minha bisnonna e a sua coragem em atravessar o oceano com um bebê e 5 crianças pequenas, a propriedade será chamada de Villa di Rosa"
Chegada dos brasileiros
A região montanhosa de Garfagnana, no norte da Toscana, está sendo repovoada por brasileiros. O que começou na cidadezinha de Fabbriche di Vergemoli, localizada a 50 quilômetros de Pisa, está se espalhando para outros vilarejos próximos como Tereglio, Minucciano e Pescia.
O movimento de compra de casas por brasileiros teve início com o empresário Douglas Roque, em 2019. Ele se uniu ao arquiteto italiano Alberto da Lio para auxiliar os interessados na compra das casas.
Além de ajudar com as burocracias legais e tributárias, eles realizam a construção e restauro dos imóveis. O serviço custa em média 9 mil euros.
Dessa forma, a legalização e reforma de uma casa de oportunidade custa no mínimo 11 mil euros, contando com os 2 mil euros dos materiais extras.
Mais de 100 brasileiros compraram imóveis na região da Garfagnana. Quinze famílias adquiriram propriedades por 1 euro. As outras, investiram em casas de oportunidade.
"Há todo tipo de pessoas que compram as casas", explica Douglas. "Muitas vão curtir a temporada. Há também os que pretendem trabalhar e morar aqui. São médicos validando o diploma, profissionais liberais e programadores de TI que trabalham em home office."
As reformas das casas nem bem começaram, mas já estão mexendo com os ânimos dos moradores de Fabbriche di Vergemoli. Para receber os novos proprietários, o vilarejo está construindo estacionamentos e reformando estradas e pontes.
Quem quer fazer negócios, quem quer viver em paz e quem quer vir de férias vai encontrar um ambiente ainda mais animado e bonito do que agora"
Micheli Gianini, prefeito de Fabbriche di Vergemoli
Cultura e tradição
A chegada dos novos moradores certamente mudará a vida no vilarejo. "A nossa principal expectativa é ver a cidade mais viva, com janelas e luzes acesas, gente nas praças, crianças correndo nas ruas e indo à escola", conta Gianini.
No passado, essa não era uma cena incomum na cidadezinha. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, muitos italianos foram embora dos vilarejos para encontrar trabalho nas cidades.
Um grande êxodo da população e o abandono da agricultura em favor da industrialização modificou os vilarejos na Itália. "Nós temos aldeias inteiras abandonadas", lamenta Gianini. "Por isso podemos receber novos moradores. Até porque o nosso território é muito grande."
Existem muitos vilarejos fantasmas na Itália. São mais de 6 mil cidadezinhas em ruínas, enquanto outras 15 mil perderam mais de 95% dos seus residentes, aponta o relatório da ANCE (Associação Nacional de Construtores de Edifício, em tradução livre).
Fabbriche di Vergemoli está longe de ser uma cidade fantasma. Mas ainda assim é pequena. A maioria da população é composta por idosos, e conta com 800 habitantes.
O vilarejo repovoado por brasileiros começou a se desenvolver em 1.300. Por muitos anos, a produção de farinha de castanha em moinhos artesanais era uma tradição importante na cidade.
Embora seja impossível voltar no tempo, é importante respeitar os costumes. Pensando nisso, o empresário Douglas Roque comprou um moinho de farinha de castanha, construído no ano de 1.700.
O moinho estava fechado há 60 anos. É um símbolo muito importante para a cidade. Funcionava como uma cooperativa. As pessoas levavam as suas castanhas para moer neste lugar"
O seu intuito é reformar o local e voltar a produzir a farinha da região.
Ritmo diferente
A futura proprietária de uma casa de oportunidade, Margot Crescenti, também quer resgatar a história da cidade. Ela é restauradora de papéis e pretende conservar os documentos do vilarejo.
Lá é um berço de documentos antigos. Têm muitos na igreja da cidade. Eu quero salvar as obras e devolver para a comunidade"
O seu amor pela Itália é de longa data. Ela se especializou em restauração de papéis em Florença, capital da Toscana, em 1981. E morou por 5 anos no país. "Florença é uma coisa absurda. Cada passo que você dá é um tapa na cara de história. É viver no paraíso."
Margot diz que jamais teria dinheiro para comprar uma casa de 400 mil euros na capital da Toscana. Mas Fabbriche di Vergemoli era uma ótima possibilidade, ainda mais por ser próxima de outras cidades interessantes.
A Itália tem uma boa infraestrutura de trem. Posso ir e voltar de Veneza e Florença no mesmo dia"
Ela adquiriu um imóvel de 50 m², por 19 mil euros. É um depósito de 2 andares que irá se transformar em uma moradia com aquecimento solar. "Não é grande, mas é muito confortável e toda de pedra. É um patrimônio."
A estimativa é que as casas de oportunidade fiquem prontas em 1 ano e meio. Assim que receber o imóvel, a restauradora de papéis irá morar na Itália com o seu marido, o guitarrista José Pires de Almeida Neto, 66 anos.
Atualmente, eles vivem em São Paulo e em São Francisco, nos Estados Unidos.
O músico tem uma carreira consolidada na América do Norte. Por isso, um dos planos do casal é abrir uma casa de jazz na cidade. "Pensamos em algo bem rústico. Um local pequeno e gostoso para os músicos se encontrarem e tocarem juntos", revela Margot.
Como já viveu na Itália, a restauradora de papéis imagina como será a vida no país.
Ir para uma cidade dessas é ter mais tempo para a natureza. É para gente se ouvir mais, conversar com os amigos e ter calma"
Assim como o ritmo é diferente, os hábitos no país também são outros. "Quem resolve ter uma casa na Itália tem que entender que é uma civilização antiga, com princípios e costumes diferentes", explica Margot. "É uma comunidade que a gente vai se infiltrar, mas tem uma vida e uma cultura própria. As pessoas que estão indo para lá tem que ter respeito."
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