Ostentação e polêmica: a história dos estádios da Copa do Mundo de 2022
Muhammad Ali foi recebido com todas as honras no Qatar, onde participou de uma luta exibição a céu aberto, no Estádio de Doha:
"Nossas boas-vindas a nosso irmão, o campeão mundial Muhammad Ali, não só como um campeão mas como um irmão, um membro da comunidade muçulmana", dizia o locutor, em árabe e em inglês. "É sabido que nosso irmão não está realizando suas atividades apenas pelo esporte, mas pelo Islã, lutando pela disseminação da palavra no Ocidente, nos Estados Unidos da América."
O locutor seguiu o discurso e encerrou saudando o xeque Ahmad bin Ali, emir do Qatar, e o primeiro-ministro, xeque Khalifa bin Hamad. Era 1971, ano em que o pequeno emirado, encravado em uma península no Golfo Pérsico com metade da área de Sergipe, formalizou sua independência do Reino Unido.
Desde seus primeiros passos no tabuleiro geopolítico, o Qatar usou o esporte na construção de uma identidade nacional.
Em 1972, Khalifa bin Hamad deu um golpe de Estado e se tornou o novo emir. No ano seguinte, o estádio da capital recebeu outra divindade do esporte: Pelé. O Santos fazia uma excursão global que passou por quatro continentes. No Qatar, enfiou 3 a 0 em um combinado local que tinha como base o Al-Ahly — não o Al-Ahly egípcio, fresco na memória de palmeirenses (e uma lembrança feliz para corintianos e colorados) —, mas seu homônimo qatari.
Segundo o Acervo do Santos, em sua turnê o alvinegro jogou na neve, na Alemanha, e na areia, no Kuwait e no Barein. Mas, em Doha, jogou no gramado. Até a década de 1960, era a única cidade do Oriente Médio que tinha um estádio com campo, segundo o livro "Sports and Nationalism in Asia" (diversos autores, sem edição brasileira). Isso já dava uma ideia de como o emirado estava decidido a investir no esporte.
Para receber Muhammad Ali e o Santos, o país renovou o Estádio de Doha, que poucos anos depois foi substituído como sede nacional dos grandes eventos pelo novo Estádio Khalifa. Inaugurado em 1976 para a Copa do Golfo, ele virou um marco do esporte do Qatar, palco de exibições de diversos esportes, cartão de visitas do comitê olímpico nacional.
Naquela época, sediar um grande evento internacional era algo distante. O Qatar era um outro país. A descoberta de petróleo, que trouxe desenvolvimento urbano, era algo recente. Estradas, ruas pavimentadas e veículos eram uma novidade dos anos 1950. Os primeiros edifícios com mais de dez andares chegaram nos 1980.
Os megaprojetos em cultura e esporte são dos anos 2000. Foi nessa década que o emirado começou a se candidatar às Olimpíadas e à Copa do Mundo. Em 2010, foi escolhido para sediar o Mundial de 2022, em uma eleição marcada por denúncias de corrupção.
Ao longo desses 45 anos, o Estádio Internacional Khalifa serviu para treinar o país em competições internacionais. Sediou a Copa do Golfo mais três vezes, os Jogos Asiáticos de 2006 e a final do Mundial de Clubes de 2019, em que o Liverpool derrotou o Flamengo.
O país estava se habituando às competições internacionais, mas ainda não jogava de "igual para igual", como dizia o meme daquela partida. Ou seja, o Qatar ainda não havia mostrado todas as cartas, que provariam que, ao ser comparado às últimas sedes, Rússia, Brasil e África do Sul (que torraram bilhões em lindos elefantes brancos), ele não faria feio.
Pelo contrário. O mais emblemático das novas arenas, escalada para a abertura e a final da Copa, é o Lusail, inaugurado no mês passado. O projeto é de autoria do escritório britânico Foster and Partners, responsável por obras como a reforma do prédio do Parlamento alemão, em Berlim, a sede da Apple, na Califórnia, e alguns dos modernos edifícios que mudaram a cara das margens do Tâmisa, em Londres.
Com capacidade para 80 mil pessoas, agora ele é o maior estádio do país e, assim como as outras arenas da Copa, tem pegada de carbono zero. Após o Mundial, a ideia é que ele tenha a capacidade reduzida em 75% e tenha algumas áreas transformadas em espaço públicos, lojas e clínicas.
Controvérsia
No papel e nas fotos e vídeos de divulgação, tudo lindo. Mas a construção do estádio, iniciada em 2017, além da ampliação e modernização do Khalifa e das obras das outras arenas, foi marcada por denúncias de escravidão.
Eram trabalhadores estrangeiros confinados em espaços superlotados, fedendo a esgoto aberto, com passaportes recolhidos, o que os impedia de deixar o país ou buscar outro trabalho, segundo a Anistia Internacional. As condições eram tão extremas que houve casos de mortes causadas por excesso de calor.
O esporte vem sendo usado há décadas para a construção da identidade qatari. Mas quem ergue essas obras, e todo seu entorno (aeroporto novo, metrô, hotéis, estradas?) são estrangeiros: cerca de 95% da força de trabalho do país vem de fora, especialmente da Índia, Nepal e Bangladesh.
Lusail é um símbolo desse Qatar dourado, rico, esbanjador e polêmico. A cidade planejada, que marcou a estreia do país no circuito da Fórmula 1 este ano, tem hotéis de luxo, parque de diversões, prédios ultramodernos, campo de golfe, marina e um belo calçadão.
Nos próximos anos ela deve ganhar também parque aquático, um shopping de luxo e toda a estrutura das Qetaifan, ilhas artificiais destinadas a receber praias, parques, clubes e outras comodidades.
Se o Lusail, o Khalifa e as outras arenas não vão seguir a sina de se transformar em elefantes brancos, teremos que esperar mais de um ano. A Copa acontecerá somente em novembro e dezembro de 2022, e não no meio do ano, como tradicionalmente acontecia.
Mais uma novidade daquela que vem sendo chamada de "menor Copa da história".
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