Encanto, choro e um helicóptero, por favor: como foi minha 1ª vez na neve
Não fossem uns dias de atraso, teria visto neve na Alemanha há nove anos. Só ganhei a lembrancinha: gelo derretido, lama de escorregar e a certeza de que minhas botas eram baixas demais para o frio que vinha daquele chão. Com sapatos reforçados colocados na mala um mês antes do voo (é sério!), viajei no início de dezembro para finalmente ver neve. Dessa vez, na França.
Estava bem no início da temporada de inverno. Parei em Paris, logo fui a Lyon e, então, peguei mais três horas e algumas cidades bucólicas de estrada até La Rosière, estação de esqui na beiradinha leste da França que faz divisa com a Itália. No caminho, vi pela janela do transfer a paisagem dos sonhos chegar: montanhas enormes em tons de branco-neve e azul-céu, mais bonitos que qualquer código Pantone.
Depois do trecho sinuoso, capaz de fazer o carro dar leves deslizadas, cheguei sem enjoos — milagre. Saí da van e entrei no congelador dos Alpes, cordilheira de quilômetros de extensão e largura que faz uma espécie de arco sobre a Itália, passando pela Suíça, Alemanha, Liechtenstein, Áustria e Eslovênia.
Estava ali para a inauguração do Club Med La Rosière. O prédio foi construído sobre um antigo aeródromo no Vale da Tarentaise, um lugar quase inóspito a 1950 metros de altitude, na comuna de Montvalezan.
No resort, pude dormir e acordar olhando para os flocos de neve, que nem sequer sabia que na vida real tinham o mesmo formato de "Frozen". Por mais óbvio que soe.
Expectativa e realidade: é sempre sobre isso
Quando contei sobre a viagem para pessoas próximas, ouvi de tudo. "A neve deixa a gente molhado". "Mal consegui ficar em pé de esqui". "Frio é bom só para tirar foto. Tô fora".
Surpreendentemente, as frases mal-humoradas me serviram para calibrar as expectativas. Estar preparada para o último ambiente com o qual alguém que nasceu na praia teria intimidade.
Uma parte da experiência foi fácil. A calefação do hotel ajudava um tanto. Do lado de dentro, fiz ioga com vista, comi carbonara enquanto a neve se acumulava igual bolo de aniversário nas mesinhas ao ar livre e entrei na piscina assistindo aos pinheiros serem polvilhados de açúcar de confeiteiro.
Já lá fora, meu bem, qualquer traço de poesia congela e o cérebro repete: que frio, que frio, que frio.
Só as roupas separam o seu corpo do vento de meros -4°C a -16°C. Ao ficar por mais de dez minutos nos entornos do resort, agradeci até à máscara que barrava covid-19 e frio.
Então o jeito é abrir mão do estilo. Colocar blusa segunda pele, suéter, meia-calça, meia térmica, protetor de orelha, cachecol, gorro e luvas especiais para a neve. Por cima, casaco e calça impermeáveis, sobretudo se a ideia for esquiar.
A questão, porém, é meio "faça o que eu digo e não o que eu faço". Com a empolgação, saí correndo para me jogar na parte macia da neve de calça jeans, sapato meio desamarrado e uma das luvas perdida.
Estendi as pernas e os braços e me movimentei incessantemente. Tudo para deixar um anjinho marcado, dar o check na lista de "coisas para fazer antes de morrer" e sobreviver.
Exagerei, admito. Mas aqueles segundos queimaram um pouco meu tornozelo, encharcaram o par de meias e molharam o jeans. Cruzei o resort descalça para me trocar, segurando as botas e a humilhação.
Nas demais saidinhas, me mantive sem mergulhar na neve. Tapada da cabeça aos pés, curti a geladeira e voltei a reparar na arquitetura dos flocos, no tipo de vegetação, na cadeia infinita de montanhas.
Mundo, eu vou esquiar!
Em vez de dormir, fiquei de olhos bem abertos na noite anterior ao esqui. Ansiosa, quis recapitular mentalmente os vídeos de YouTube que assisti antes de viajar.
O despertador tocou e eu já tinha presenciado o sol nascer. Estava pronta para vestir as camadas de roupa "sem pecar pelo excesso", como disse o pessoal do Club Med, e buscar os equipamentos.
Cada hóspede passa o tamanho do pé no momento da reserva e, com a pulseirinha do quarto, abre o seu armário numa sala estilo filme norte-americano de colegial. Dentro do compartimento, ficam guardados o capacete e os pares de botas, esquis e bastões.
Amadores ou profissionais, todos passam por uma porta e pisam direto na neve. Vão para a direita aqueles que manjam sair esquiando e para a esquerda quem — eu! — tem que aprender a andar.
Andar, digo, também literalmente: colocar um pé na frente do outro com o intuito de ir para frente. Que difícil. Escorrega, patina. Meu Deus, será que estou passando muita vergonha?
A aula começa devagar, quase parando. O primeiro feito é ficar de pé. Rolou.
A ideia é encarar tudo como uma conquista. Faz parte cair, ir para o lado oposto sem querer, esbarrar em alguém, enterrar os esquis na neve fofa, cair de novo... Tudo isso enquanto uma criança passa por você (lá, eles ensinam esqui para pessoinhas a partir de 4 anos). Meme pronto.
Esquiar é diferente de muitos esportes. Pensa no surfe. Iniciantes brigam com o mar. Profissionais aproveitam e fazem parte dele.
A neve está ali para ser a sua aliada na missão de deslizar para lá e para cá com o mínimo esforço possível".
Leva tempo.
Até lá, você se mexe além do que precisa e os joelhos doem na tentativa de compensar a falta de mobilidade nos tornozelos. "É normal. Você está começando", comentou o professor que me seguiu por todos os cantos durante as 2 horas de aula pela manhã.
Helicóptero ou esquibunda: para mim tanto faz
O ápice — ou cume, se gosta de trocadilhos — da experiência foi à tarde. Um amigo pediu ao professor que fôssemos andar num trecho dos 68 quilômetros de pistas iniciantes de La Rosière.
No total, as rotas da estação somam 152 quilômetros. Pela proximidade da fronteira, é possível fazer um pit stop para almoçar na Itália e voltar ao hotel. Incrível. Mas é lógico que não fizemos isso.
Descemos um pedaço curto, suficiente para o friozinho gostoso na barriga. Ao final, pegamos um teleférico. Lá em cima, bateu a realidade:
Estou aqui mesmo? Uau!".
O encantamento murchou quando entendi que o Club Med tinha ficado para trás e a gente seguia subindo, subindo, subindo... "Achei que estávamos indo pro hotel", disse ao meu colega. "Não. Vamos numa pista maior".
Eu também? Mas ainda viro para um lado quando quero ir para o outro.
Desci do teleférico e dei uns passos para a frente só porque era obrigada a liberar a passagem. Assim que deu, flexionei os joelhos querendo fincar meu corpo no chão e...
Sim-ples-men-te TRA-VEI.
Vão chamar um helicóptero, pensei. Ou posso descer de esquibunda. Duas alternativas mais plausíveis do que esquiar. Não?
A solução foi outra: convocar mais uma professora para nos acompanhar. O nervoso foi tanto que tive que engolir a tensão e acabei esquecendo o nome dela, perdão.
Mesmo com o pânico carregando o peito, olhei para ela e confiei. Querida, esforçava-se para falar português. Contou que treinava o idioma com uma amiga e por aplicativo de celular. Me senti 10% mais confortável.
Ela deitou os dois bastões e me deu um lado para segurar. Fomos, juntinhas, atravessando cada descida, curva e desnível. Me explicava tim-tim por tim-tim do que teríamos que fazer.
Em determinado momento, precisávamos sair do meu passo de tartaruga e pegar velocidade para passar por uma "lombada" altinha e comprida. Eu disse: "tenho medo". Ela replicou: "podemos gritar, que tal?". Gritamos.
Assim que avistei o fim da rota e o Club Med, o receio virou adrenalina em todo o corpo. Agradeci — sem ela, as chances estavam abaixo de zero — e caí no choro. Foi uma emoção-emocionada da canceriana que sente tudo demais.
Inclusive a realização.
*A repórter viajou a convite do Club Med La Rosiére.
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