Brasileira cruzou os Lençóis Maranhenses e viajou o mundo de muletas
A jornalista Jéssica Paula (@jessicapaula) já esteve em países nada convencionais, viajou sozinha por algumas das regiões mais conflituosas da África e, recentemente, fez uma travessia de três dias nos Lençóis Maranhenses.
O que mais chama atenção nessa goiana de 30 anos, porém, é o fato de ter rodado o mundo, sozinha, apoiada sobre muletas.
"A muleta acaba se tornando secundária para mim porque a história que eu vivo nas viagens é muito maior. É o desafio, a treta e o interesse pelo desconhecido", conta a jornalista, em entrevista para Nossa.
Deficiente desde os 6 anos por conta de uma mielite aguda, Jéssica concluiu em outubro um trekking exigente pelo maior campo de dunas do Brasil, no Maranhão.
"As primeiras dunas são lindas, mas três dias atravessando a pé os Lençóis Maranhenses é muito mais interessante", desafia essa viajante que já esteve em 34 países e carrega no currículo perrengues como ameaça de prisão e travessia de fronteiras em um ônibus onde era a única mulher.
"O que eu vim fazer aqui?"
Para concluir os 30 quilômetros de caminhada no Maranhão, cerca de 10 quilômetros por dia, Jéssica foi acompanhada por um guia de turismo local e um cavalo, que ajudava a aliviar o peso da mochila de oito quilos com roupa e equipamento fotográfico que levou para a travessia.
O início da caminhada costumava ser ainda de madrugada para evitar as altas temperaturas que atinge a região depois das 11 da manhã.
Para encarar o clima hostil, Jéssica recomenda levar camisetas de manga longa com proteção UV, bandana para proteger o rosto e muito protetor solar. No seu caso, sua mala levava também muletas e borrachas extras, inclusive uma ponteira estabilizadora, que "é maior dos que as tradicionais e não afunda na areia".
Seu maior desafio, porém, não foi encarar a variação de altitude, muito menos andar de muletas sobre terreno irregular de areia fofa. O pior mesmo foi dar conta do psicológico que sempre parecia sabotar a viagem.
Eu olhava para os lados e não tinha ninguém, eu achava que eu era a única louca ali. No primeiro dia me questionava se realmente tinha algum sentido fazer aquilo", confessa.
Outra dificuldade era cruzar os oásis, como são chamados os pequenos povoados onde mora a rara população em meio às dunas, cujo terreno mais íngreme tem areia fofa, vegetação e trechos com lama.
"Eu subia as dunas e o vento me jogava para trás. Era como andar de costas em uma escada rolante", compara.
Para tranquilizar os familiares que ficaram do lado de cá do país, ela usava um rastreador satelital, por onde era possível acompanhar seu trajeto e trocar algumas mensagens.
De acordo com a população local que encontrou durante a travessia, Jéssica é considerada a primeira pessoa de muletas a realizar a travessia dos Lençóis Maranhenses.
Essas histórias podem servir de inspiração para muita gente. Quero mostrar que é possível [viajar como deficiente]", explica.
Nem que para isso tenha que cruzar fronteiras.
De muletas pelo mundo
Criada em um sitio em Rio Verde, no interior de Goiás, Jéssica sempre quis saber o que tinha do outro lado do rio que separava sua casa do restante do mundo.
E a curiosidade era tanta, que ela foi parar onde nem todo viajante tem coragem de ir.
Em 2013, viajou para a Etiópia, Sudão, Sudão do Sul e Uganda, em um projeto pessoal em que visitou vilarejos africanos afetados por guerras ou conflitos políticos, conheceu crianças soldados e esteve em um campo de refugiados.
Da experiência de dois meses na África, nasceu o livro "Estamos Aqui" (editora Schoba), cujo título é inspirado em uma frase que a própria jornalista ouviu durante a viagem: "Quando você voltar pro seu mundo, conta para eles que estamos aqui".
Jéssica não só cumpriu a promessa, como também não deixou de contar os perrengues vividos no continente.
Fui ameaçada de prisão na Etiópia, na fronteira com o Sudão, porque eu estava tentando entrar em Nilo Azul, um dos estados mais conflituosos da região, onde estrangeiros e jornalistas são proibidos", relembra.
Jéssica conta que chegaram a desconfiar que ela era jornalista e reviraram toda a sua mala em busca de evidências. Decidida a entrar na região, cruzou toda a Etiópia de sul a norte para tentar entrar novamente por outra fronteira.
"Eu estava bem determinada a entrar no Sudão porque era proibido. O impossível sempre me motivou", conta Jéssica que, na segunda tentativa, foi denunciada por um funcionário do hotel em que estava hospedada.
"Ou você vai embora ou você vai ser presa. Até a Cruz Vermelha tinha acabado de ser expulsa de lá", lembra a jornalista.
Como ela mesma explica, "sempre gostei de contar historias, mas [na África] fui procurar problemas que fossem maiores do que o meu".
Ela só não contava com os cerca de 50°C de temperatura que chegou a pegar no deserto, segundo informou para a reportagem, e que derreteu a borracha de suas muletas.
Entre os momentos mais tensos da viagem, a jornalista lembra também quando embarcou em um ônibus em que era a única mulher, entre o Marrocos e a Mauritânia, e o hotel em que ficou hospedada no Sudão, onde só havia homens.
Porém, isso tudo é nada, diante do que Jéssica passa no seu dia a dia.
Perrengues de muletas
"Quando vou à uma zona de conflito, eu espero condições difíceis. Mas quando se olha para a principal economia da América do Sul [São Paulo], a situação das calçadas é mais alarmante", analisa Jéssica.
Para ela, mais do que uma luta social, a "acessibilidade no turismo é uma demanda de mercado".
Assim como lembra a jornalista, de acordo com dados da The Open Doors Organization, só nos Estados Unidos, "mais de 27 milhões de viajantes com deficiência realizaram 81 milhões de viagens, gastando um total $58.7 bilhões de dólares", entre 2018 e 2019.
Os EUA se destacam pela variedade de opções de serviços, como aquela motinho para deficientes. Eles aprenderam a fazer negócio com isso", diz.
Em sua opinião, foi na Europa que ela encontrou as melhores (e as piores) condições para viajantes deficientes, como Luxemburgo, um pais extremamente acessível, assim como o interior da Alemanha.
O mesmo já não pode ser dito das capitais Paris e Londres.
"Os metrôs são muito antigos e era muito difícil ter que pular o vão entre a plataforma e o vagão com um mochilão de 80 litros nas costas", lembra a jornalista.
Jéssica pede melhores condições para viajantes deficientes, desde que não seja carregada no colo.
"A gente carrega mala e mochila, mas não é comum sair carregando as pessoas no colo. É uma falta de humanização com a pessoa deficiente, pois é constrangedor para todo mundo. Geralmente são homens que se propõem a carregar a gente e eu me sinto um objeto", desabafa.
Mas a sua conquista mais recente foi a aceitação do próprio corpo durante as viagens, quando começou a ter confiança para tirar fotos do corpo inteiro.
"Graças às minhas muletas fui para todos esses lugares e hoje elas são uma extensão do meu corpo. Foi uma processo de aceitação", finaliza a jornalista que, atualmente, se prepara para o projeto "7 Elementos", com experiências como escalar o Pão de Açúcar, no Rio, esquiar em uma estação para deficientes na Califórnia e fazer trilhas sobre lavas resfriadas no Havaí.
E assim, com as mãos firmes na manopla das muletas, Jéssica segue viajando o mundo com rodinhas nos pés.
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