Hospital de caridade francês sobrevive com produção de vinhos milionários
É no mínimo inusitado que um hospital se sustente a partir do comércio de seus próprios vinhos. Pois é justamente essa a razão de ser do Hospices de Beaune, uma instituição de caridade que há mais de cinco séculos provém cuidados médicos na cidadezinha de Beaune, na região da Borgonha, no centro-leste da França.
Construído em 1443 por Nicolas Rolin (Chanceler do Duque da Borgonha, conhecido como "Felipe, O Bondoso") junto à esposa Guigone de Salins, esse icônico hospital sem fins lucrativos nasceu com o propósito de atender gratuitamente a enfermos e desabrigados numa época em que o país sofria com epidemias, assolado pela praga e pela fome, consequências da Guerra dos Cem Anos.
Graças a dezenas de benfeitores que ao longo do tempo doaram lotes de vinhas como gesto de agradecimento — ou para compensar seus pecados, como diziam as más línguas —, a instituição floresceu e hoje é a força motriz por trás do próspero mercado de vinhos da Borgonha.
Turismo histórico
As instalações originais do Hospices de Beaune — atualmente um museu e principal atração turística da cidade — ocupavam o suntuoso Hôtel-Dieu, monumento de maior prestígio da Borgonha.
Joia da arquitetura medieval, sua fachada de estilo gótico extravagante com telhado de telhas esmaltadas revela um espetáculo admirado por mais de 400 mil turistas todo ano.
Uma vez dentro do edifício, a imaginação se perde em cômodos preservados, tal qual a "Salle des Pôvres" (Sala dos Pobres), onde leitos hospitalares acolhiam pacientes acometidos por doenças epidêmicas; porém, diferente dos ambientes gélidos das casas de saúde comuns, a sala em questão está repleta de afrescos e relíquias sacras, numa imponente capela, de modo que os fragilizados podiam assistir à missa sem saírem de seus aposentos.
Vale saber que os últimos pacientes foram admitidos não faz tanto tempo assim, na década de 70.
A viagem ao passado continua na antiga farmácia, permeada por vitrines e frascos de elixir alaranjados, onde o espectador tem a oportunidade de imaginar como eram os boticários de outrora.
Outra grata surpresa é se deparar com a cozinha praticamente intacta, abastecida de utensílios antigos que transmitem claramente como as refeições eram preparadas pelas mãos das freiras do convento. Ali, as atenções também se dividem diante da beleza do teto ricamente esculpido e pintado.
Atração para enófilos
Entre uma sala e outra, contudo, o visitante aprofunda o conhecimento acerca do caráter benevolente do Hospices de Beaune, que por sua vez compreende um emaranhado de negócios conhecido como Hospices Civils de Beaune.
Em outras palavras, essa instituição é um complexo formado pelo Hôtel-Dieu e seu museu, no coração da cidade, além do hospital público de Beaune, Nicolas Rolin — localizado na periferia, atende mais de 20 mil pacientes por ano —, sem contar asilo, escola de enfermagem e, logicamente, uma imensidão de vinhedos de produção sustentável sem os quais nada disso perduraria.
À frente das vinhas, inesperadamente, está a enóloga Ludivine Griveau: pela primeira vez na história, é uma mulher que lidera tanto a viticultura quanto as vinificações do hospital.
Em um ambiente predominantemente masculino, levou tempo até que ela pudesse conquistar respeito e admiração de uma equipe formada por dezenas de produtores de costumes enraizados às tradições, incomodados em responder a uma figura feminina.
"Passamos por episódios complicados", contou Ludivine, 43 anos, ao relatar os primeiros dois anos de gestão, quando muitas vezes se escondia atrás de um muro baixo no meio das plantações para chorar. Hoje, após sete anos no comando, suas admiráveis postura e talento são respeitados por todos.
Sob a tutela de Ludivine, está uma área de 600 mil m² espalhados pelas propriedades mais nobres da região: ao passo em que acumulava uma doação atrás da outra, já no século 18 o Hospices de Beaune era um dos proprietários de vinhedos mais importantes da Borgonha.
Luxo engarrafado
Para entender a sublime grandeza dessas terras, é valido saber que dali vêm os vinhos brancos da uva Chardonnay mais caros e cobiçados do mundo (para se ter uma ideia, pode chegar a 50 milhões de euros — cerca de R$ 322 milhões — um único hectare nessa região).
Afinal de contas, é uma abundância em terroirs saudáveis, ou seja, onde acontece a alquimia perfeita entre clima e solo que naturalmente interfere na qualidade dos vinhos.
Para tirar o máximo proveito desse presente da natureza, o Hospices de Beaune realiza a famosa venda de seus rótulos, em todo terceiro final de semana de novembro, quando centenas de barris da última safra dos seus 50 cuvées são arrematados no mais antigo e importante leilão de vinhos que existe: para compradores e colecionadores, esse eletrizante evento — atualmente conduzido pela Sotheby's — significa o ápice no calendário mundial dos vinhos.
Enquanto a cidade se transforma num grande pólo de festividades — com degustações, jantares, desfiles e barraquinhas com comida de rua — centenas de filantropos do mundo todo se reúnem no Halles do Marché de Beaune (galpão sede da feira livre da cidade), com lances tão generosos a ponto de somarem a quantia de 11,7 milhões de euros (cerca de R$ 75 milhões) em vendas — recorde da última edição.
O ponto mais alto, no entanto, talvez seja levar a disputada barrica Pièce des Presidents: considerado o lote mais especial da safra, foi arrematado por 800 mil de euros (cerca de R$ 5 milhões), alcançando o valor mais alto desde que o evento foi estabelecido, em 1859. Quantia robusta, inclusive, será destinada a outras duas ONGs que atuam na proteção a mulheres vítimas de violência assim como no combate ao câncer de mama.
Representante no Brasil
"Participar do leilão nos permite entrar na história do Hospices de Beaune, como se voltássemos aos anos 1400, ao mesmo tempo em que abraçamos um projeto de grande ajuda humanitária", comenta Alaor Lino, maior comprador fora da França e embaixador dos vinhos borgonheses no Brasil.
Segundo ele, degustar esses vinhos é um presente, não só pelo seu patrimônio histórico e social, mas pelo conceito intrínseco do chamado vin du vigneron: vinhos produzidos por pequenos produtores, verdadeiros artesãos de vocação e simplicidade, que dedicam toda a essência de suas vidas a preservar terras sagradas de tão valiosas que são.
Em São Paulo, esses tesouros da Borgonha podem ser apreciados na Anima Vinum, importadora do Alaor e único lugar no mundo que exibe a coleção com todas as cuvées do Hospices de Beaune curada em um minimuseu, com entrada gratuita.
Para os entusiastas que desejam investir na causa, vale saber que a partir de um pedido de 12 garrafas (cujo preço varia de colheita a cuvée) é possível personalizar o rótulo mítico do Hospices de Beaune com o nome impresso na garrafa, como se fosse um comprador do leilão.
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