"Último presente do meu pai, blusa me fez encarar o luto pela morte dele"
"Ganhei essa blusa do meu pai, Ricardo Nascimento, no dia do meu aniversário, em 9 de setembro de 2020. A gente nunca foi de fazer festa em casa, mas sempre tinha um bolinho. Mais por insistência do meu pai, que adorava essas datas.
Ele gostava de celebrar o Natal, Ano Novo, mas, principalmente, os aniversários dos entes queridos. E meu pai sempre fez questão de me dar pelo menos algumas lembrancinhas. Às vezes ele acertava, às vezes errava (risos).
Quando abri o presente que ele havia me levado, achei a blusa bonita, mas ela não combinava comigo. Eu sou bem clássica, básica. A blusa tem uns brilhos e eu não curto de nada brilhante.
A manga é mais ampla do que costumo usar, tem uns bordados em lantejoulas. Sempre gostei de cores sóbrias, principalmente preto, porém estava em um momento em que estava mudando o guarda-roupa, usando outras cores. Assim, não havia gostado, mas segue o baile. Ela era ok, porém não fazia sentido para mim.
Pouco mais de um mês depois, em outubro, meu pai faleceu muito subitamente e este foi o último presente que ele me deu.
Um novo significado
Ele havia tido covid-19, ficou 45 dias no hospital, mas saiu bem. Em um domingo, ele disse que estava com dor de estômago e foi para o pronto-socorro. Disseram que ele havia comido algo que não tinha feito bem e o dispensaram.
Ele continuou com dor e foi ao hospital novamente. Passou o dia lá, tomou soro. A equipe médica achou que ele estava com alguma obstrução intestinal e disse que o operariam da manhã seguinte, então me mandaram para casa. À noite, recebi uma ligação pedindo que eu voltasse ao hospital.
O médico me explicou que eles tiveram que operá-lo às pressas e, quando o abriram, perceberam tarde demais a gravidade da situação. Meu pai havia tido uma trombose no abdômen, possível sequela do covid-19.
Quando soube de seu estado, ele ainda estava vivo, mas eu não o vi mais acordado.
Foi subitamente porque, teoricamente, era apenas uma dor no estômago. Nem pude me despedir dele. Mesmo quando ele ficou internado por causa de covid-19, nós conseguimos nos despedir antes de ele entrar na UTI. Porém, não foi o que aconteceu, no fim das contas."
Sou virginiana e levo tudo para um cenário muito prático e foi o que aconteceu após a morte do meu pai. Minha tia estava super desestabilizada, minha irmã não mora no Brasil, então tive que resolver tudo sozinha.
Foi muito desgastante, mas estava sendo prática, muito serena. Não tinha caído a minha ficha e a minha terapeuta ficava me perguntando quando eu sentiria o luto. Toda a dor veio de uma vez quando encontrei a blusa no armário, oito semanas depois.
Lembranças doces e amargas
Era muito próxima do meu pai, então a morte dele me abalou. Escondi quase tudo o que tinha dele, porque não tinha condições de lidar com isso. Foi limpando o guarda-roupa, dois meses depois, que achei a blusa preta que ele havia me dado, ainda com a etiqueta. Eu não a havia escondido, só tinha me esquecido da existência dela.
Fiquei pensando o que fazer com ela, se a guardaria ou daria para doação. Era uma sensação esquisita, levei um tempo para entender o que estava sentindo, o que a blusa significava.
A peça me trouxe todos os sentimentos que, até então, estava ignorando. Tenho memórias muito boas e passei por muitos obstáculos, mas não posso mais ligar para ele para compartilhar sobre minha vida. A gente vai descobrindo novos significados para as roupas.
Comecei a pensar na preocupação e cuidado dele em escolhê-la para mim. Ele tirou um tempo para comprá-la, teve a sensibilidade de levar uma blusa preta, mesmo ele não gostando de cores escuras, só porque eu gostava.
Lembrei do carinho envolvido nesse processo. Por isso, essa peça me traz memórias doces e amargas."
Já tentei experimentá-la algumas vezes, mas não consigo usá-la casualmente. Não me sinto confortável nem mesmo para fazer as fotos dessa reportagem com ela no corpo.
Eu ainda não sei o que fazer com ela, porque, por outro lado, não consigo me desapegar.
Não sei como transformá-la, dar um novo significado que não me faça ter essas sensações. Eu a olho e, às vezes, penso em coisas muito tristes, outras em coisas muito doces. Cada vez é um sentimento novo. Por isso, por enquanto, ela vai ficar no meu armário."
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