Drinques em cápsulas e em lata: os dias dos bartenders estão contados?
No início do ano, a Black+Decker anunciou na CES 2022, em Las Vegas, uma espécie de robô bartender. O Bev é uma máquina de cápsulas com cinco canudos que, ao serem acoplados às garrafas de bebida, misturam o líquido com o conteúdo dos drinques pré-prontos.
É possível escolher a potência alcoólica do coquetel, e a lista de cápsulas, produzidas pela empresa Bartesian, já passa de 40 opções. A máquina ainda emite luzes para enfeitar sua festinha modernosa.
O Bev chegará às prateleiras americanas em maio a US$ 300 (cerca de R$ 1.650). Não é a primeira máquina do tipo no mercado (a da própria Bartesian foi apresentada no longínquo 2015). Mas a entrada nesse filão de uma marca centenária, famosa pelas ferramentas e eletrodomésticos, anunciada na maior feira de tecnologia do mundo, tem peso.
Pode ser uma tendência que afetará a mixologia ou até ameaçar a profissão de bartender? É uma modinha inofensiva? Ou algo no meio do caminho?
"Parece os Jetsons e sua visão futurista, mas para nós é apenas mais uma tentativa de substituir o talento profissional", diz Paulo Jacovos, professor do curso de formação de bartenders da Associação Brasileira de Bartenders (ABB).
Victor Quaranta, mixologista e autor de "Mixologia: o Universo do Bartender Cientista" (Senac), também recorre ao clássico desenho animado:
Estamos na era da facilidade de tudo, finalmente as máquinas dos Jetsons estão no mercado, temos o robô que varre e passa pano, máquinas que fazem cafés, chás... As pessoas querem na rotina o que é mais viável, limpo e instantâneo", diz.
Cris Chaim, especialista em comunicação de coquetelaria e dona do perfil Barmina Drinks, no Instagram, acredita que a pandemia chacoalhou diversas formas de consumo, bebidas entre elas. "Assim como houve um crescimento pantagruélico do delivery, o mercado de bebidas prontas também se expandiu.
"Da mesma maneira que cansamos do nosso tempero, também cansamos dos drinques que sabemos fazer e procuramos opções mais fáceis."
Já para Mauricio Porto, autor do blog "O Cão Engarrafado", sobre o mundo do uísque, e sócio do bar Caledonia Whisky & Co., em São Paulo, não se trata tanto de acessibilidade. "O preço de uma máquina dessas já faz com que a balança penda para o trabalho manual. E, veja bem, ter a máquina não evita que você tenha que desembolsar para comprar insumos", lembra.
Acho que é mais algo ligado a desejo que a qualquer outra coisa."
Afinal, a curiosidade de ver um robô parindo um drinque é cativante. "Nosso imaginário é de um androide preparando alguma coisa, tipo o Michael Sheen no [filme de 2016] 'Passageiros'." No ano passado, inclusive, a MSC Cruzeiros chegou mais perto dessa realidade ao apresentar Rob, um robô humanoide bartender.
Porto lembra que até a Suntory, a gigante japonesa dos destilados, lançou no mercado internacional, em 2016, uma máquina específica para fazer highball, o drinque à base de uísque que os japoneses reinventaram e transformaram em uma tradição etílica nipônica nas últimas décadas. "Claramente há um mercado que consome essas máquinas e busca inovações. Mas não vejo como algo que possa substituir o bartender de carne e osso", acredita.
Jacovos é enfático: "É quase impossível, mesmo em tempos de pandemia e redução de idas a bares e restaurantes. Nada substitui o talento", reforça.
Coquetéis enlatados
Quanto às latas e garrafas com drinques prontos à venda nos supermercados, Quaranta enxerga um produto diferente, para demandas específicas.
O barman não pode estar em todos os lugares do mundo, já a lata pode ser levada ao topo de uma montanha, e carregar o bartender seria dureza", brinca.
Cris concorda. "Enlatados são um produto diferente e uma alternativa ao drinque tradicional em ocasiões que pedem facilidade e rapidez no preparo, como um dia na praia ou na piscina, um evento ou um grande festival", exemplifica.
Porto vê mais espaço para as latinhas e coquetéis engarrafados do que para as máquinas. "Existe uma diferença crucial: nos anos 1990 eles eram bem industrializados e não escondiam isso. Hoje temos um pouco dos dois, temos alguns que trazem o conceito de coquetelaria craft para dentro da garrafa", diz.
Quaranta tem visão semelhante. "Tenho visto latinhas de drinques incríveis nas prateleiras, e elas inclusive indicam tendências internacionais, alertam os bartenders do que se passa lá fora." Para ele, as latas são um complemento que divulga a coquetelaria, não uma concorrência.
Sua excelência, o bar
Para todos eles, a experiência do bar seguirá inigualável. Jacovos enfatiza que uma máquina não substitui o prazer sentido por quem "gosta de sentir o perfume de um gim sendo colocado no mixing glass e misturado com outras bebidas, um twist de limão siciliano torcido na hora?".
Quaranta lembra que não se trata apenas do drinque. "Hospitalidade, encantamento. Existe uma troca entre o profissional e o comensal dentro de uma atmosfera que nenhum robô será capaz de criar", diz. "O drinque tradicional, mesmo em casa, requer cuidado e um certo charme e carinho", diz Cris, para quem preparar até o mais simples coquetel "chega a ser uma experiência afetiva".
Para Porto, são experiências distintas.
Ir a um bar e tomar coquetéis com os amigos ou chamar o pessoal em casa e servir algumas dessas garrafinhas. São propostas diferentes, e acho que há uma convivência pacífica entre elas. E com as máquinas também — exceto se for um androide!"
Além disso, "o bartender não se reduz a um misturador de ingredientes. Sua essência é o serviço no balcão, e ele pode trabalhar na indústria e em outros setores da cadeia de produção", lembra Cris.
A entrada das máquinas no setor pode também se desdobrar em consequências inesperadas. Nos EUA, alguns bares já hackearam as máquinas da Suntory para fazer não só highball com diversos uísques americanos como também usar a alta carbonatação que o aparato oferece para variar outros coquetéis. Brindam os robôs à criatividade humana.
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