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Conheça história e curiosidades do jenever, "pai" quase desconhecido do gim

Jenever em propaganda holandesa dos anos 20 - Buyenlarge/Getty Images
Jenever em propaganda holandesa dos anos 20
Imagem: Buyenlarge/Getty Images

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

25/02/2022 04h00

Hoje, o jenever é conhecido basicamente como "pai do gim". Algo que reduz um bocado sua relevância. Isso aconteceu porque, enquanto o gim teve épocas de grande popularidade ao longo da história (como agora), o jenever caiu no ostracismo do bar. Mas houve um tempo em que o jenever era uma bebida que atravessava mares, inspirava coquetéis e atemorizava autoridades.

Jenever é um destilado com infusão de zimbro, daí sua relação próxima com o gim, que também leva as bagas da planta, comum na Europa, em sua fórmula. A diferença entre as duas está na base.

O gim é feito com álcool neutro, normalmente de cereais, como a vodca. Já o jenever é uma mistura de dois destilados. Um de malte (tipo um uísque não envelhecido) e um neutro com o zimbro e outros botânicos. Por causa disso, ele tem notas mais maltadas.

Jenever é paixão compartilhada por belgas e holandeses ao longo da história - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Jenever é paixão compartilhada por belgas e holandeses ao longo da história
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Existem dois tipos principais de jenever. O "oude" (antigo), que tem mais presença de destilado de malte, e o "jonge" (jovem), que tem menos. Ele surgiu no século 20 para suprir uma demanda por bebidas mais neutras. Então a distinção entre "oude" e "jonge" não é sobre envelhecimento, mas sobre qual estilo surgiu antes.

A origem

Trata-se de uma bebida holandesa e até hoje é o destilado nacional dos Países Baixos. Mas não só: o jenever é tão ou mais belga do que holandês, além de ser comum em regiões fronteiriças da França e da Alemanha. Estamos falando de uma bebida muito mais antiga do que a atual configuração desses países.

Vendedor de jeniver e três mendigos, em pintura de Jan van Ossenbeeck, 1647-1674 - Sepia Times/Universal Images Group via Getty Images - Sepia Times/Universal Images Group via Getty Images
Vendedor de jeniver e três mendigos, em pintura de Jan van Ossenbeeck, 1647-1674
Imagem: Sepia Times/Universal Images Group via Getty Images

Nos séculos 13 e 14, Bruges era o principal centro comercial da região do Mar do Norte e a alquimia era uma atividade em alta em Flanders, condado cuja capital era Bruges.

"Não era praticada somente por pretensos magos tentando transformar chumbo em ouro ou criar a lendária pedra filosofal. Alquimia era algo praticado primordialmente por mercadores tentando criar destilações que isolassem óleos medicinais", explica a belga Veronique Beittel no livro "Genever: 500 Years of History in a Bottle" ("Genever: 500 anos de história em uma garrafa", sem edição brasileira).

O zimbro era muito usado, naquela época, como remédio. O poeta flamengo Jacob van Maerlant, em uma enciclopédia dedicada à flora e à fauna da Europa, escreveu em verso, na década de 1260, que bagas de zimbro cozidas em vinho eram boas para dores intestinais. Van Maerlant se referia a uma aguardente, o termo medieval para destilados em geral, mas a menção ao zimbro indica que se tratava de um genever primitivo.

No século 16, quando os territórios dos atuais Bélgica e Países Baixos estavam sob domínio do Império Espanhol, as técnicas de destilação se desenvolviam na Europa, e Flandres era uma referência no assunto. Isso foi interrompido abruptamente em 1601, explica a mostra permanente do Museu do Jenever, em Hasselt, na Bélgica.

Os arquiduques decidiram banir a produção de destilados porque achavam que a produção de grãos estava indo em excesso para os alambiques. Ou seja, era uma ordem para as pessoas fazerem menos bebidas e mais pão.

Tradição holandesa

Frotas espanholas na Guerra dos Oitenta Anos, contra rebeldes Holandeses - Getty Images - Getty Images
Frotas espanholas na Guerra dos Oitenta Anos, contra rebeldes holandeses
Imagem: Getty Images

Isso aconteceu em uma região já duramente afetada pela Guerra dos Oitenta Anos, em que essas províncias se rebelaram contra o governo espanhol e que resultou na independência da Holanda, em 1581. Com o banimento e a crise em Flandres, os renomados destiladores flamengos migraram para o norte e outros países.

Os holandeses rapidamente se tornaram uma potência marítima e comercial e, ao abrirem entrepostos em vários cantos do globo, uma enxurrada de especiarias, plantas e temperos ficou à disposição dos alquimistas. O genever se desenvolveu e virou uma bebida mais complexa.

Foi nessa época que surgiu a lenda da "coragem holandesa". Soldados em batalhas tinham à disposição garrafinhas que os faziam lutar mais bravamente, o que teria impressionado seus colegas ingleses. Era jenever.

Chega o gim

Ilustração da Guerra dos Trinta Anos - Getty Images - Getty Images
Ilustração da Guerra dos Trinta Anos
Imagem: Getty Images

A Guerra dos Trinta Anos, no século 17, foi um dos conflitos mais mortíferos e importantes da história. Criou os alicerces dos Estados-nações modernos e encerrou a era das grandes guerras religiosas no continente e também abriu o caminho para você bebericar seu ginzinho. Tim-tim.

Os britânicos colaboraram com a causa protestante contra católicos e lutaram ao lado da Holanda. Aos poucos, os soldados ingleses assimilaram a "coragem holandesa" e ajudaram a popularizar a bebida ao voltar para casa.

Décadas mais tarde, em 1689, o príncipe holandês Guilherme de Orange, casado com a rainha inglesa Maria 2ª, foi coroado rei britânico. Agora Guilherme 3º, ele precisou encarar um desafio à economia do país, explica o autor britânico Ian Gately no livro "Drink: A Cultural History of Alcohol" ("Bebida: uma história cultural do álcool", sem edição brasileira).

Bebedores de gim em taberna inglesa - Getty Images - Getty Images
Bebedores de gim em taberna inglesa
Imagem: Getty Images

A Inglaterra estava produzindo grãos em excesso, o que derrubava os preços. O rei sabia o que fazer, pois em sua terra natal cereais em estoque não ficavam mofando: iam para o alambique e viravam jenever.

O governo lançou então um decreto que permitia a qualquer inglês produzir aguardentes em casa a partir de cereais. A fabricação de jenever cresceu, e a bebida logo ficou mais conhecida por seu nome em inglês, gim.

Com o tempo, elas ganharam diferenças, como vimos. Mas na época era a mesma bebida.

Surge a Bélgica

Bruges, na região de Flandres - Getty Images - Getty Images
Bruges, na região de Flandres
Imagem: Getty Images

A produção de jenever nos Países Baixos seguia à toda. Segundo o site especializado "Spirits Beacon", o número de destilarias em Schiedam, até hoje uma das grandes produtoras do destilado, saltou de 37 para 250 no fim do século 18.

Em 1830, a Bélgica conquistou sua independência. O banimento dos alambiques era algo do passado distante, e a produção voltou a explodir em Flandres, uma das regiões históricas que agora compunham o novo país.

Dessa vez, o governo local colaborou. Reduziu taxas e estimulou a produção de jenever local. A Bélgica chegou a ter cerca de mil destilarias registradas.

No século 19, a Bélgica vivenciou um crescimento econômico e desenvolvimento industrial elevados. Era um dos países mais ricos do mundo, e seu jenever refletia isso.

Guerra e Lei Seca (mas não aquela)

Propaganda de jeniver, na Holanda - Buyenlarge/Getty Images - Buyenlarge/Getty Images
Imagem: Buyenlarge/Getty Images
Propaganda de jeniver dos anos 20, na Holanda - Buyenlarge/Getty Images - Buyenlarge/Getty Images
Imagem: Buyenlarge/Getty Images
Propaganda de jenever, na Holanda - Buyenlarge/Getty Images - Buyenlarge/Getty Images
Propaganda de jenever, na Holanda
Imagem: Buyenlarge/Getty Images
Cartazes dos anos 1920, na Holanda - Buyenlarge/Getty Images - Buyenlarge/Getty Images
Cartazes dos anos 1920, na Holanda
Imagem: Buyenlarge/Getty Images

A Bélgica sofreu na Primeira Guerra Mundial e reforçou a sina de "campo de batalha da Europa". Quando invadiram o país em 1914, os alemães surrupiaram alambiques para usar o cobre e fabricar cartuchos para armas.

Passada a guerra, mesmo livre dos invasores, a Bélgica estava empobrecida e devastada. Preocupado com os níveis de alcoolismo e violência desde o começo do século, e influenciado pelos grupos sociais e políticos que combatiam o consumo de bebidas em uma série de países, o governo instituiu a Lei Seca.

Ela mirava apenas os destilados e seu consumo em locais públicos. Ou seja, ainda era possível comprar jenever em lojas e dava para beber vinho e cerveja sem infringir a lei.

Mas ela durou muito mais: enquanto a infame Lei Seca dos EUA durou 13 anos, na Bélgica foram 66. Somado à pilhagem dos alambiques na guerra, isso arruinou a indústria de jenever belga.

Não foi o que se passou do outro lado da fronteira. Como os holandeses não tiveram legislação parecida, a bebida dos Países Baixos não teve uma crise do tipo e acabou se firmando ao longo das últimas décadas. Por isso a associação do jenever com a Holanda é muito mais forte.

Jenever degustado com queijos holandeses - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Jenever degustado com queijos holandeses
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Decadência

Nos EUA, em que a produção do jenever acontecia desde o fim do século 19 com a imigração de belgas e holandeses, a Lei Seca fez com que o gim caseiro — mais simples e clandestino — dominasse. Com a indústria belga em frangalhos e o consumo americano descendo a ladeira, o jenever acabou virando um destilado exótico.

Enquanto isso, na Bélgica, os níveis de consumo de álcool despencaram. Mas, tal qual nos EUA, gângsteres assumiram o contrabando de bebidas clandestinas.

Quando a lei caiu, na década de 1980, eram os produtores de cerveja da Bélgica que estavam se preparando para ganhar o mundo.

A vasta e criativa cultura cervejeira local acabou se tornando patrimônio da humanidade e um dos maiores símbolos do país. Hoje, a não ser que se trate de abstêmios, beber cerveja é algo essencial em qualquer roteiro turístico na Bélgica.

Nos Países Baixos, mesmo sendo um símbolo local, o jenever não é, digamos, um ícone turístico. É uma nota de rodapé nos guias. A maioria das pessoas que vai a Amsterdã quer experimentar outras coisas.

Drinque com Jenever - Dina Rudick/The Boston Globe via Getty Images - Dina Rudick/The Boston Globe via Getty Images
Drinque com jenever
Imagem: Dina Rudick/The Boston Globe via Getty Images

Como e onde beber

Nos EUA e no Reino Unido, há um tímido crescimento do interesse pelo jenever nos últimos anos. Marcas tradicionais, como as holandesas Bols e Rutte, aparecem em algumas cartas de coquetéis nesses países.

Para aliar bebida e viagem, é só seguir as tradições. Em seu clássico "Guia Internacional do Bar", de 1979, Michael Jackson, morto em 2007, dava suas dicas. Hasselt, onde fica o Museu do Jenever, é, ao lado da bela Gent, o local onde a cultura do jenever é mais forte.

Os holandeses e belgas tomam seu jenever puro, muito gelado, em pequeninos cálices tipo tulipa, como aperitivo ou um drinque forte", ensina Jackson.

Café De Jonge Wees Liqueur, que vende jenever em Amsterdã, na Holanda - Getty Images - Getty Images
Café De Jonge Wees Liqueur, que vende jenever em Amsterdã, na Holanda
Imagem: Getty Images

Há também versões aromatizadas com frutas, que colaboraram nessa retomada da bebida nas últimas décadas.

Hoje, o jenever tem denominação de origem protegida na União Europeia e no Reino Unido. Só pode ser vendido como jenever, genever ou genièvre a bebida que segue algumas normas e é produzida na Bélgica, nos Países Baixos e em regiões específicas da França e da Alemanha.