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Volta ao mundo é terapia para família velejadora e menina com Down

Família na proa do veleiro na travessia para Cabo Verde - Arnau Blanch
Família na proa do veleiro na travessia para Cabo Verde
Imagem: Arnau Blanch

Annamaria Marchesini

Colaboração para Nossa

28/02/2022 04h00

Aos 4 anos Ana deu os primeiros passos sozinha. Foi em dezembro de 2021, numa praça de Lanzarote, nas Ilhas Canárias.

Ela nasceu com síndrome de Down, tem uma cardiopatia congênita, problemas motores, dificuldade para comer e precisa de medicamentos, mas nada disso impediu seus pais, os paulistanos Pedro e Estela Zanni, de realizar a viagem que sonhavam: velejar ao redor do mundo com a família, que inclui o caçula Gabriel, de 2 anos.

Eles deixaram o Brasil em abril de 2021 e, depois da quarentena na Grécia, partiram em maio do porto de Dénia, na Espanha, onde o veleiro "Tudo Bem" os esperava. Navegaram pelo Mediterrâneo, cruzaram o Atlântico e estão no Caribe, onde ficam até dezembro, quando atravessarão o Pacífico.

Cruzando o Atlântico para Cabo Verde  - Arnau Blanch - Arnau Blanch
Cruzando o Atlântico para Cabo Verde
Imagem: Arnau Blanch

A viagem terminará na Austrália daqui 2,5 anos, onde venderão o barco e voltarão ao Brasil. As aventuras da família Zanni podem ser acompanhadas pelo perfil @SailTudoBem, no Instagram.

"Além de viver a vida de outras formas e contextos, o propósito de nossa viagem e da página é falar sobre a liberdade para as pessoas com deficiência", afirma Estela, 40, psicóloga clínica e orientadora de carreira.

Além do atraso motor, Aninha passou por cirurgia cardíaca aos 4 meses e precisa fazer ecocardiogramas periódicos, toma medicações e tem restrições alimentares, mas acreditamos que nada disso a impede de estar no mundo, de ser feliz e evoluir com liberdade".

Aninha, Gabe e Estela  - Arnau Blanch - Arnau Blanch
Aninha, Gabe e Estela
Imagem: Arnau Blanch

Sonho antes dos filhos

Pedro, 42, é administrador de empresas com mestrado e doutorado pela FGV, onde dá aulas de Estratégia há 15 anos e é sócio de uma consultoria de estratégia empresarial. Ele veleja desde a infância e sempre quis dar a volta ao mundo de barco. Ela queria conhecer novas culturas.

Há 5 anos, numa viagem à Grécia, decidiram realizar o sonho quando tivessem filhos em idade pré-escolar. A data da partida foi decidida na gravidez de Gabriel: sairiam quando o bebê tivesse dois anos, durante a primavera na Europa, para evitar o inverno do hemisfério norte. E assim fizeram.

A família em Lanzarote, nas Ilhas Canárias - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A família em Lanzarote, nas Ilhas Canárias
Imagem: Arquivo pessoal
São Pedro, na ilha de S. Vicente, Cabo Verde  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
São Pedro, na ilha de S. Vicente, Cabo Verde
Imagem: Arquivo pessoal

Durante os preparativos, a pandemia os pegou de surpresa. O veleiro de 43 pés (13 metros) foi comprado pelo Whatsapp cinco meses antes da viagem.

"O normal é conhecer e testar a embarcação no mar, mas por causa das fronteiras fechadas, contratamos um especialista em veleiros para dar aval ao barco", conta Pedro.

A partir de Dénia foram oito meses no Mediterrâneo. Passaram pelas ilhas Baleares, na Espanha, a Sardenha, Sicília, a costa oeste da Itália e a Córsega, na França. Onde ancoram, os Zanni se dedicam a conhecer os lugares.

Nestas andanças deixamos a Ana e o Gabe soltos e eles adoram", conta a mãe.

A caminho da marina em St Marteen - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A caminho da marina em St Marteen
Imagem: Arquivo pessoal

Balanço do mar é terapia

Foi assim que, numa praça de Lanzarote, a menina que só se locomovia sentada, impulsionada pelas pernas, levantou-se sozinha e deu os primeiros passos. "A Ana tem um atraso importante até em relação a outras crianças com síndrome de Down.

No Brasil ela demorava mais para galgar uma nova aquisição e agora parece que é mais rápido. Já o Gabe adquiriu muito equilíbrio e coordenação." Estela e Pedro atribuem estes avanços à vida no barco. Ela explica: "A fase atual da fisioterapia e terapia ocupacional da Ana simula o "balançar".

Ana no bote em Maiorca, Espanha  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ana no bote em Maiorca, Espanha
Imagem: Arquivo pessoal
Gabe em Bosa, Itália  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Gabe em Bosa, Itália
Imagem: Arquivo pessoal

No Brasil ela teria em 1 hora, uma vez por semana, o que eles têm 24 horas todos os dias. Viver num barco exige buscar ininterruptamente o equilíbrio e fazer força para se equilibrar deu um boom no avanço motor dos dois. Fora isso, o Gabe está aprendendo inglês e a Ana está mais falante".

Somadas aos estímulos externos, a rotina da menina inclui sessões de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional semanais, acompanhadas virtualmente pelos profissionais que a atendiam em São Paulo.

Aninha se distrai na travessia do Atlântico  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Aninha se distrai na travessia do Atlântico
Imagem: Arquivo pessoal

A cada 6 meses ela precisa fazer um ecocardiograma para checar o coração. Para isso, os pais pesquisam especialistas do lugar onde estão navegando. A médica brasileira que acompanha Ana desde a gestação avalia os resultados dos exames. "No último eco fizemos um bate e volta de avião para outra ilha das Canárias, porque onde estávamos não havia cardiologista infantil", diz Estela.

Além da especialista em síndrome de Down da Aninha, o casal conta com o apoio da pediatra de Gabriel e de uma médica amiga para emergências. Na bagagem o "Tudo Bem" leva medicamentos diversos e suficientes para um ano, "o que nos dá a tranquilidade de fazer a consulta pela internet e ter os remédios à mão", diz Pedro. Os pais foram vacinados contra a covid na Itália, onde mãe e filhos terminaram o processo para obter a cidadania italiana, que Pedro já tinha.

Preparo e repercussão

O Tudo Bem na paisagem da Sicília  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O Tudo Bem na paisagem da Sicília
Imagem: Arquivo pessoal

Para fazer o sabático, o casal seguiu um planejamento rigoroso nos últimos 5 anos. "Economizamos o máximo, compramos dólares sempre que possível e alugamos nosso apartamento em São Paulo para gerar renda", conta ele.

"E nossa vida a bordo é mais barata: não há escola, IPTU, aluguel, energia elétrica, IPVA e só podemos comprar a quantidade de alimentos que cabe no barco." A venda do "Tudo Bem" na Austrália dará reforço financeiro para os Zanni voltarem ao Brasil e ao trabalho.

"Estamos nos dedicando ao nosso sonho e esperamos que o propósito desta viagem inspire outras famílias como a nossa", diz Estela.

Recebemos muitas mensagens de pais e avós contando que, ao ler nossos relatos, passaram a encarar com mais leveza e naturalidade os cuidados e viagens com filhas, filhos, netos e netas. É o que me estimula a manter a página."

Contato intenso

O veleiro cruzou o estreito de Gibraltar, entre Espanha e Marrocos, no fim de 2021 e seguiu para Lanzarote, de onde partiu para a primeira travessia oceânica da família: mil milhas (1850 quilômetros) em 8 dias até Cabo Verde, aonde chegaram no primeiro dia de 2022. De lá, foram 17 dias até St Marteen, no Caribe.

Nas duas etapas, Pedro e Estela contaram com a ajuda de tripulantes que dividiram o trabalho no barco em troca de transporte e da alimentação, pagando uma pequena ajuda de custo. "São jovens com alguma experiência que sonham fazer longas travessias e se candidatam às viagens nas marinas", ela explica.

Família em Bosa, Itália - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Família em Bosa, Itália
Imagem: Arquivo pessoal

O casal contou com a ajuda de um espanhol e três franceses — um até Mindelo e os outros de Cabo Verde ao Caribe. Só o fotógrafo Arnau Blanch, de Barcelona, completou as duas etapas com os Zanni.

Para evitar riscos, o "Tudo Bem", projetado para mar aberto, possui 3 rádios de diferentes ondas, usados para comunicação com a terra e com embarcações próximas, equipamentos ligados a dois satélites para emergências e um telefone, GPS e o sistema de navegação do barco. No Brasil, um meteorologista passa as condições do clima onde a família veleja. "Navegamos com muita segurança", garante Pedro.

De maio para cá os pais notaram que a vida no barco provocou mudanças que vão além da evolução motora e cognitiva das crianças. "Ana e Gabe estão mais confiantes, seguros e parecem felizes o tempo todo", diz a mãe.

"Nós estamos mais conectados, porque nunca convivemos tantas horas por tanto tempo. Ficamos mais unidos e corajosos à medida que vencemos os desafios com segurança e fé. Na página tem muita gente dizendo que rejuvenescemos. Faz sentido, porque o contato intenso com a natureza dá mais energia e estamos nos sentindo mais vivos."