Carne de cachorro e menu só para turistas: como é comer na Coreia do Norte
Um país onde os turistas não decidem qual restaurante frequentar, onde se sentar e o que provar. Conversando com quem viajou à Coreia do Norte, nação com o regime ditatorial mais fechado do mundo, fica claro que a excentricidade do destino está também nas refeições.
As diferenças em comparação a outros lugares surgem antes mesmo do embarque. Não adianta, por exemplo, sonhar com os pratos em fotos de redes sociais: os restaurantes não possuem conta no Instagram.
Nem vale cogitar uma pesquisa on-line de estabelecimento durante a viagem. Primeiro, o sinal de internet cai e não volta mais quando os aviões decolam de Pequim e Xangai ou quando os trens que partem da China e da Rússia cruzam a fronteira terrestre.
Segundo, a visita à Coreia do Norte funciona no sistema "all inclusive". Típico em resorts, o valor do café, do almoço e do jantar são contabilizados nos pacotes vendidos a preços fechados e disponíveis em versões individual e em grupo, com duração de 24 horas até 10 dias.
O desjejum acontece sempre no hotel. Tem omelete, café preto, torrada e algumas frutas. As outras duas refeições, compostas usualmente por pratos da culinária tradicional, são ordenadas conforme o roteiro organizado previamente com agências autorizadas pelo órgão central de turismo do país.
A logística do itinerário — que inclui paradas obrigatórias na capital Pyongyang, como o Grande Monumento da Colina Mansu, onde os viajantes são convidados a deixar flores no pé das estátuas de 22 metros de altura dos falecidos líderes norte-coreanos Kim Il-sung e Kim Jong-il, e passeios customizados de acordo com o interesse do estrangeiro, caso da visita à área desmilitarizada na divisa com a Coreia do Sul — conta muito mais que a opinião dos turistas na hora de escolher um restaurante.
Existem poucas exceções. Quando se está no tour privativo e conquistou certa intimidade com o guia (os visitantes não andam livremente e são acompanhados por guias treinados pelo governo, que falam inglês, espanhol e outras línguas, do início ao fim da viagem), é possível negociar uma demanda específica, como experimentar carne de cachorro ou ir pela segunda vez em algum lugar que tenha adorado.
Mesmo nesse contexto de pouca liberdade, os restaurantes revelam, por meio do ambiente, da comida e da operação, traços culturais significativos. Para entender a fundo como é esse "turismo gastronômico", Nossa falou com o advogado Lucas Caiado, a arquiteta Adriana Marto e o viajante profissional Lucas Estevam, do canal Estevam Pelo Mundo, que foram à Coreia do Norte em 2019, e com Tiago Maranhão, que viajou ao país para fazer uma reportagem esportiva em 2013.
Receitas tradicionais, mas não tão populares
Tiago Maranhão diz que cada restaurante tem a sua especialidade e não se lembra de folhear nenhum cardápio. Sem perguntas como "o que você prefere", os preparos eram colocados direto no centro da mesa para que fossem partilhados entre o grupo de turistas.
Cada pessoa recebia talheres e um par de jeotgarak (palitinhos orientais conhecidos no Japão como hashi) marcados com o símbolo da DPRK — lá, não se fala em "Coreia do Norte", só em "República Popular Democrática da Coreia".
Eram comidas tradicionais. Arroz, conservas como kimchi [acelga fermentada] e aves ou peixes com ossos. Tudo picante", diz.
Adriana aponta que estrangeiros que não se dão bem com a ardência conseguem saborear uma versão mais leve. "Nos lugares que fui levada, a picância era moderada pensando nos gringos. Eu, que queria conhecer o máximo da cultura como ela é, pedia para me mandarem igualzinho ao que eles comem. Vinha quebrando tudo".
Das conservas à pimenta, Lucas, que visitou a Coreia do Sul neste ano, ressalta as semelhanças das regiões, separadas em dois países desde 1948.
Pela culinária, você vê que eles são muito parecidos culturalmente falando. Possuem a mesma base, ainda que a Coreia do Sul tenha, claro, forte influência ocidental"
Entre as ligações estão o churrasco coreano, onde carnes finíssimas são seladas pelo próprio freguês numa grelha acoplada à mesa, e o banchan, que consiste em pequenos pratos côncavos servidos com acompanhamentos do arroz cozido, muitas vezes considerado o item principal da refeição.
Esses mini bowls impressionaram Adriana. "Na área desmilitarizada, fui a um restaurante tradicional que me chocou com o chamado "prato do rei". Colocaram na mesa muitas cumbucas douradas e bonitas com tudo o que o lugar servia. Era bem gostoso. Mas notei que só eu que estava comendo isso".
Perguntava bastante para a minha guia se eles costumavam comer os preparos típicos que me ofereciam. Ela dizia "não muito" e não dava detalhes de como era a alimentação cotidiana. Algumas comidas eu diria que ela nunca experimentou".
Adriana se viu dando garfadas mais comuns à população numa visita a um bar. "No salão ao lado, estava acontecendo um casamento. Tentei entrar para ver e não fui autorizada. Ao menos comi um macarrão característico dessa ocasião. Era fino, escuro e servido numa sopa fria com vegetais por cima".
Bebidas à parte e marmitas para o trabalho
O makgeolli (vinho de arroz doce e leitoso popular entre camponeses e usado em rituais ancestrais) é outra tradição presente em ambas as Coreias.
Só não faz mais sucesso na do Norte do que a cerveja de produção própria. Batizada de Taedonggang em homenagem ao Rio Taedong, dizem que lembra uma Ale britânica e tem 5% de teor alcoólico.
"Achei o gosto suave. Era um pouco aguada", lembra Tiago.
Adriana chegou a provar alguns drinques. "Me senti à vontade mesmo sendo mulher. A única recomendação nesse sentido foi não fumar em público. Só homens podem. Lá, eles ainda separam bastante os gêneros".
Ao contrário das comidas, as biritas não entram no "all inclusive". "No restaurante, eles escolhiam tudo para mim. Menos as bebidas. Geralmente indagavam: água ou cerveja?", conta Estevam.
O pagamento era feito oras ao fim do jantar, oras no hotel. Sempre para os guias, em euros, dólar ou yuans (o dinheiro chinês).
Estrangeiros não podem usar a moeda local. Consegui trocar com um funcionário uma quantia mínima só para trazer como souvenir", fala Tiago.
Lucas precisou fazer a conversão no dia em que visitou o supermercado (onde achou Pringles, Nutella e Coca-Cola nas prateleiras) e guardou alguns trocados que valeram uma experiência fora do roteiro. "Fiquei na Coreia mais tempo que outros visitantes do meu grupo. Nos últimos dias, estava sozinho com os guias e tive a oportunidade de comprar um sorvete de massa".
A ação, simples de ser feita em outros países, foi uma espécie de "façanha" na Coreia do Norte. As comidinhas de rua não fazem parte do script destinado aos turistas e não são tão celebradas pelos moradores locais.
Lucas explica: "ainda é regra que as mulheres parem de trabalhar fora após o casamento. Faz parte das funções de casa cozinhar para o marido e garantir a marmita que ele leva para comer durante o dia".
Além disso, os moradores têm uma cota para gastar com alimentação por mês. "Quanto maior o seu cargo, maior a sua cota", afirma Tiago. Durante a apuração de reportagens, ele viu que a outra opção para os norte-coreanos, além da comida caseira, é o refeitório. "Toda grande repartição tem um".
Restaurantes parados no tempo e turistas escondidos
Os olhos de arquiteta de Adriana não puderam deixar de notar a estética dos estabelecimentos.
"Com piano 'coroado' por arco de flores, parede de espelhos sextavados, mesas de saiote e laços gigantes nas cadeiras, era como se eu estivesse de volta aos anos 1990".
A "vibe" foi reforçada por Estevam:
O salão do café da manhã lembrava uma festa de 15 anos bem cafona".
Assista ao vídeo de Estevam e veja mais detalhes da viagem dele:
Enquanto os grandes restaurantes cultivavam essa aparência, digamos, curiosa, os pequenos estavam mais para uma casa. Um item na parede, porém, era comum a todos: o quadro com a foto de um Kim.
"A imagem estava sempre no alto. Para olharem de baixo para cima. O 'papai' e o 'vovô' são tratados como santos ou seres mitológicos", relata Adriana.
O culto aos governantes foi observado por todos os entrevistados, assim como a pequena quantidade de pessoas que ocupavam as mesas dos endereços.
"Era bizarro. Ia para os restaurantes com a guia e muitas vezes tinha eu e mais duas mesas. Ou eu sozinho. Num restaurante gigantesco. Quando fui embora de um deles, a luz logo se apagou. Era como se estivesse funcionando só para atender os turistas", diz Estevam.
Pelo preço, quem pode frequentar são só os militares/políticos, os diplomatas, o alto escalão..."
Tiago considera que existe um esforço nítido para separar os visitantes. Estevam comenta que tentou tomar café com chineses (eles costumam ir ao país a trabalho e a passeio), mas não conseguiu. "Adoro conversar com as pessoas durante as minhas viagens, só que os seguranças falaram desesperados: 'Não é para misturar. Você, europeu, para lá". Adriana teve a mesma sensação: "eu nunca ficava 'à mostra' no restaurante, sempre em salas privativas".
Carne de cachorro: o que é difícil de engolir?
Uma das experiências gastronômicas que permite alteração sem resistências no roteiro é a sopa de cachorro. Para prová-la, os turistas precisam demonstrar a vontade aos guias e pagar um valor extra.
Lucas experimentou e diz que se trata de uma sopa vermelha muito temperada e levemente adocicada com pedaços da carne, que é fibrosa e rígida. "Comi muito bem na viagem e essa foi a refeição mais chique que fiz, mas não sei se toparia de novo. Não achei particularmente gostoso".
Tiago também pediu para ir. "Considerei uma experiência cultural. Chegando no restaurante, porém, me lembrei da minha última cachorra e não tive coragem. Os cinegrafistas que estavam comigo provaram. Acharam a carne um pouco dura e sem sabor marcante", fala Tiago.
Uma coisa é fato: os paladares ocidentais questionam automaticamente a prática. "É uma tradição difícil de entender, mas tem contexto. Primeiro, existe uma questão cultural. Segundo, não há fartura alimentar na Coreia do Norte".
Não temos dimensão do tamanho de privação que a Coreia passou e passa até hoje".
Explicando: Tiago faz referência ao período conhecido como Marcha Árdua, crise de fome que atingiu o país entre 1994 e 1998. A morte de centenas de milhares de pessoas (não há números oficiais) teve razões políticas — o fim da União Soviética —, ambientais e geográficas.
Somente 20% das terras montanhosas são aráveis e durante 6 meses as geadas impedem o cultivo. Por isso, especialistas consideram impossível o país abastecer sozinho seus 25,8 milhões de habitantes.
Nenhuma parte dessa realidade controversa, porém, é passada, conversada ou respondida aos visitantes. "Lembro quando indaguei sobre os restaurantes vazios. Perguntei se a população não comia lá. O guia falou que eles gostam de se alimentar em casa. A questão é nunca saber quão verdadeira é a resposta. Para mim, não é preferência, é falta de dinheiro", avalia Estevam.
Infelizmente, boa parte dessa conclusão é uma suposição minha com base no que eu estudei antes de embarcar. Em momento algum eu pude entrar na casa de alguém e conversar".
Lucas entende que o cuidado excessivo torna a vivência cultural mais difícil. "Não tem absolutamente nada na programação que não seja, de alguma forma, uma propaganda. É um turismo montado".
O jeito para tentar mergulhar mais a fundo é ficar de olhos e coração abertos para enxergar além do que é mostrado. "Prestar atenção nos caminhos, nas pessoas, nos lugares, na arquitetura", sugere o advogado.
Quanto mais curto é o tour, mais limitada é a experiência. Até mesmo Adriana, que ficou lá por uma semana, considera que conheceu pouco do país.
"Me senti no filme 'O Show de Truman'. A estética brutalista de Pyongyang, com monumentos grandes e ruas largas, surpreende. Mas o fato de ser muito vazio é bem estranho. Eles tinham pânico que eu fotografasse o outro lado da Coreia, das plantações e da criação de galinha até em bairros residenciais da cidade".
Para ela, tais questões foram mais difíceis de engolir do que as comidinhas coreanas colocadas à mesa sem a chance da escolha. A arquiteta reflete:
Viajei com um amigo. Na volta, ficamos uns dias sem nos falar. Só digerindo tudo que tínhamos vivido".
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