Guerra na Ucrânia reacende disputa sobre origem de borscht, a sopa 'russa'
O início da invasão da Ucrânia pela Rússia em 24 de fevereiro não reacendeu apenas questões sobre a legitimidade das fronteiras entre os dois países, como também sobre a origem de pratos considerados clássicos "russos".
No centro desta polêmica está a sopa borscht, uma receita querida nas duas nações. Após o Bar da Dona Onça, em São Paulo, decidir boicotar o estrogonofe nesta terça (8) — e voltar atrás no dia seguinte —, houve quem automaticamente já se lembrasse da iguaria à base de beterrabas, repolho, carne, cenouras e creme azedo como um modo de "defender" a cultura ucraniana.
Em meio à zona de conflito, o correspondente da emissora americana NBC Richard Engel testemunhou um voluntário ucraniano que preparava a sopa em uma cozinha móvel do exército do país.
Há quem disputasse nas redes sociais nos últimos dias que borscht não é um prato russo ou ucraniano, mas "soviético".
Enquanto isso, em Nova York, restaurantes russos que servem borscht tem sido boicotados, segundo o jornal "The New York Times", e os ucranianos veem suas filas crescerem com pedidos de... Borscht.
Ao "Los Angeles Times", a filha de ucranianos de Odessa, Marina Yusim, também acredita que a questão seja mais complexa. "Na Ucrânia, éramos judeus. Na América, somos russos. Mas, na realidade, somos da Ucrânia, que foi parte da União Soviética".
Esta disputa, no entanto, já acontece há décadas e, no ano passado, quando as tensões que levaram à guerra este ano já aumentavam, alcançou até status de meme e debate no TikTok.
Há dois anos, o parlamento da Ucrânia aprovou um pedido para que borscht se tornasse um Patrimônio Imaterial da Humanidade reconhecido pela Unesco — de origem ucraniana. Um ano antes, em 2019, o Ministério das Relações Exteriores da Rússia chegou a declarar que borscht é um símbolo da cozinha russa.
O posicionamento oficial não agradou aos ucranianos na época, que alfinetaram em resposta "como se roubar a Crimeia não fosse o bastante, vocês tiveram que ir até lá e roubar o borscht da Ucrânia também".
A divisão entre política e cozinha é complexa quando se trata dos dois países. Mas a definição do que é a sopa da discórdia poderia ser a chave para selar a paz. Isto porque não há uma única receita ou versão de borscht.
Olesia Lew, chef consultora do restaurante ucraniano Veselka, em Nova York, contou à "BBC" que, durante sua estadia no Kremlin, Josef Stalin teria pedido ao seu Comissário para Comida, Anastas Mikoyan, que estabelecesse uma "cozinha nacional soviética", que compreendesse elementos de 100 diferentes populações étnicas que viviam sob a União Soviética.
O resultado deste esforço foi a publicação em 1939 do "Livro de Comida Gostosa e Saudável", que trazia receitas aprovadas pelo Partido Comunista. O volume, que está em circulação até hoje, ainda guia cozinhas por toda a Rússia.
Mikoyan precisava produzir em massa uma identidade cultural para estes pratos soviéticos. É fascinante ler o que ele escolheu de cada lugar, seja da Ucrânia ou da Geórgia, enquanto se manteve vago a respeito de ingredientes (por exemplo, "adicione carne") que não estavam amplamente disponíveis em toda a União Soviética. Este livro de receitas fez com que todos estes pratos se tornassem parte da cultura soviética e, portanto, russa, já que a Rússia era a mais importante das culturas para os Soviéticos" Acredita Olesia.
Isto explica o alto grau de interpretação do texto que permitiu, ao longo dos anos, o surgimento de variações da receita de borscht. Enquanto há locais que preparam a sopa com pedaços de frango, outros escolhem carne bovina ou suína.
Ainda de acordo com uma pesquisa realizada pela BBC, um dicionário ancestral de russo-ucraniano de 1823 define borscht como a mesma coisa que "shchi", enquanto um livro de etimologia russa de 1842 diferencia o uso da palavra para "shchi russo" (repolho azedo) e, em ucraniano, para um sinônimo de pastinaca de vaca. Tais diferenças entre idiomas também podem ter colaborado para multiplicações do prato.
O veredito? Segundo o historiador Alexander Lee, pesquisador do Centro para Estudo da Renascença na Universidade de Warwick, na Inglaterra, a sopa surgiu mesmo no território ucraniano, no século 9.
"Naquela época, o ingrediente principal era pastinaca de vaca, o que a maioria de nós hoje consideraria uma erva daninha. Ela era picada, colocada em água para fermentar por alguns dias e então misturada com caldo, ovos, creme de leite e painço para fazer a sopa. Provavelmente tinha um gosto bastante forte", explicou ao "Los Angeles Times".
Com tanta história e riqueza de detalhes por trás de um único prato, talvez a solução seja mesmo o respeito às diferenças, como sugeriu a escritora americana de origem ucraniana Natalia Antonova.
"Uma das minhas avós era ucraniana. A outra, russa. Elas não se entendiam muito, mas ambas respeitavam a comida da outra. "Diga a ela que este é um ótimo kissel [sobremesa a base de frutas vermelhas]". "O que ela põe na borscht dela?", relembrou.
"Penso nelas todas as vezes em que me queimo tirando algo do forno".
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