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Além do Moscow Mule: rebatizar pratos e drinques é tradição de mais guerras

Moscow Mule não é primeiro drinque a ser rebatizado por protestos contra guerra - Jesse Grant/Getty Images
Moscow Mule não é primeiro drinque a ser rebatizado por protestos contra guerra Imagem: Jesse Grant/Getty Images

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

16/03/2022 04h00

O protesto do Bar da Dona Onça não durou nem 24 horas. O restaurante paulistano havia anunciado que retirou o estrogonofe do cardápio em protesto contra a invasão russa à Ucrânia, mas voltou atrás e resolveu usar, ao longo de março, a renda do prato, que custa R$ 76, em um projeto para levar comida à população de rua de São Paulo.

Alguns bares, seguindo uma tendência internacional, rebatizaram o Moscow Mule. Agora é Kiev Mule.

O estrogonofe nasceu no Império Russo. "O nome vem de uma rica família da cidade de Novgorod, perto de São Petersburgo, que foi amiga íntima de Catarina 2ª e do filósofo francês Voltaire", segundo J.A. Dias Lopes no livro "A Rainha que Virou Pizza - Crônicas em Torno da História da Comida no Mundo" (Companhia Editora Nacional).

Estrogonofe à moda russa - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Estrogonofe à moda russa
Imagem: Getty Images/iStockphoto
Moscow Mule - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Moscow Mule
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Já o Moscow Mule, apesar do nome, é americano. Nasceu da necessidade de tornar a vodca Smirnoff (esta sim de origem russa) popular nos Estados Unidos. O Boteclando conta mais dessa história.

Nos EUA, alguns bares mudaram também o nome do White Russian, o drinque do Dude (Jeff Bridges) no filme cult "O Grande Lebowski" (1998). Agora é White Ukrainian. E, apesar de o governo ter proibido a importação de vodca da Rússia, os americanos não terão problemas em beber famosas marcas de origem russa.

Vodca Stolichnaya - Getty Images - Getty Images
Vodca Stolichnaya, que virou "Stoli"
Imagem: Getty Images

Smirnoff e Stolichnaya, por exemplo, não têm destilarias no país de Putin. A Smirnoff deixou Moscou depois da Revolução Russa e hoje é uma das galinhas dos ovos de ouro da britânica Diageo. A Stolichnaya nasceu na União Soviética, mas há anos é produzida na Letônia.

Na semana passada, em nome da paz na Ucrânia, removeu as referências à Rússia do rótulo e adotou o apelido, Stoli, como nome oficial. O dono da marca é um bilionário dissidente que se exilou em Luxemburgo por se opor publicamente a Putin.

Nada de pastor alemão ou salada russa

Ironias à parte, não é a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez em que pratos e drinques, entre outros companheiros queridos do nosso dia a dia, mudam de nome temporariamente por motivos politizados.

Logo após a Revolução Francesa, qualquer menção à monarquia era tabu, então, por um tempo, até as cartas de reis e rainhas dos baralhos foram substituídas.

Restaurante mudou o nome das "french fries" para "freedom fries", em 2003 - Getty Images - Getty Images
Restaurante mudou o nome das "french fries" para "freedom fries", em 2003
Imagem: Getty Images

Quem está na casa dos 30 anos talvez se lembre das "freedom fries", nome pelo qual as "french fries" passaram a ser chamadas nas lanchonetes do Congresso americano, em Washington, e em outras espalhadas pelo país. Como a França não apoiou a invasão americana ao Iraque em 2003, sobrou para as batatas fritas.

O caso foi ridicularizado. A embaixada da França nos EUA o chamou de um "não-problema, quando estamos focados em problemas sérios" e ainda disse que a origem das fritas é belga, não francesa (apesar de isso ainda ser alvo de debate nos dois países).

Na Primeira Guerra Mundial, quando os nacionalismos europeus estavam a toda, os cardápios mudaram um bocado. Na França, o café viennois, sobremesa de café com sorvete, virou café liégeois. Saiu a referência a Viena, capital dos inimigos austro-húngaros, entrou Liège, cidade belga onde aconteceu a primeira grande batalha daquela guerra.

Sobrou até para o pastor alemão - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Sobrou até para o pastor alemão
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Os ingleses passaram a chamar os german biscuits, um tipo de biscoito com geleia, de "empire biscuits". Até o pastor alemão virou "cão alsaciano" no Reino Unido, em referência à Alsácia, região francesa na fronteira com a Alemanha.

A rivalidade entre a Grécia e a Turquia em relação a Chipre, país do Mediterrâneo que viveu conflitos nos anos 1970 entre suas comunidades grega e turca, rendeu nas mesas e bancadas. O lokum, famoso docinho também conhecido como manjar turco, é chamado pelos gregos da ilha de "manjar cipriota". No auge da crise, restaurantes gregos passaram a chamar o café turco de "café grego".

Também não é a primeira vez que a Rússia, demonizada no Ocidente por causa de seus líderes políticos, acaba sofrendo as mais estranhas consequências. Na Espanha do ditador fascista Francisco Franco, qualquer referência à União Soviética era um drama. Então, a salada russa virou "salada nacional" e a montanha-russa ganhou um nome que exalava neutralidade alpina: "montanha-suíça".

Salada russa - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Salada russa
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Em 2014, após a Rússia anexar a Crimeia, no início da guerra que se estende até hoje, alguns estabelecimentos da península resolveram manifestar sua desaprovação aos EUA, que haviam imposto sanções econômicas a Moscou. Assim, o café americano virou "russiano" ou "crimeano".

Na Crimeia, até marcas "mudaram de nome". Com as sanções, redes estrangeiras deixaram a região, e o vácuo foi preenchido em um misto de malandragem do capitalismo informal com a necessidade de mostrar à população que ela não ficou isolada do mundo. As lojas da Kentucky Fried Chicken viraram Crimean Fried Chicken. A sereia da Starbucks deu lugar ao pato da Starducks.

Starducks - Rerpodução/Foursquare - Rerpodução/Foursquare
Starducks
Imagem: Rerpodução/Foursquare

Brasil já "cancelou" antes

Muitas dessas mudanças são temporárias. Podem durar algumas horas, como o estrogonofe cancelado do Dona Onça, ou alguns anos. Você pode pedir uma salada russa tranquilamente em Madri (o prato é bastante popular no país, aliás).

Outras são eternas. Em agosto de 1942, um empresário do Rio de Janeiro publicou um anúncio em jornais, após sofrer diversas ameaças de estudantes engajados contra o nazismo:

"Ludwig Voit, proprietario do Bar Adolf, declara ao bravo povo brasileiro, justamente indignado pelos vis e covardes atentados de que tem sido vítima pelas nações do eixo colocadas à margem da civilização, que, inteiramente solidário com a causa comum dos povos livres, resolveu mudar o nome do Bar Adolf para Bar Luiz, esclarecendo, ainda, que é austríaco de nascimento, tendo se naturalizado brasileiro em 1927, e, estando no Brasil há 29 anos, sempre procedeu como verdadeiro amigo do país que tão generosamente o acolheu. Outrossim, declara que o nome de Bar Adolf havia sido dado pelo seu antigo proprietário, em 1915."

Fundado em 1887 e rebatizado há 80 anos, o Bar do Luiz é um clássico da boemia carioca e brasileira. Por pouco não foi "cancelado" à moda de 1942.