Febre no Brasil e no mundo, Peru reinventou autoestima através da comida
Está lá, preto no branco: na atual lista do prêmio Latin America's 50 Best Restaurants — o "Oscar" da gastronomia, as 50 melhores mesas de toda a América Latina —, divulgada oficialmente no final de 2021, não fosse a terceira colocação do brasileiríssimo D.O.M., do chef Alex Atala, o alto do pódio — os três primeiros postos — seria primazia de restaurantes de Lima, a capital do Peru.
Com o premiadíssimo Central em primeiro, Maido em segundo e o artístico-gastronômico Astrid y Gastón em quarto lugar, a predominância dos peruanos, que não é de hoje revezam-se nos primeiros lugares da premiação, se confirma mais uma vez.
Até porque a lista final dos top 50 contém mais seis peruanos. E se subirmos ainda mais a régua, a relação The World's 50 Best Restaurants 2021, ou seja, os 50 melhores do planeta, que contempla o chef Jefferson Rueda e seu paulistano A Casa do Porco na 17ª posição, enumera os já mencionados limeños Central e Maido em quarto e sétimo lugares, respectivamente.
Afinal, o que há na sartén ("panela") de nossos vizinhos?
Reconhecida internacionalmente por sua qualidade e diversidade, a culinária peruana vinha (antes da pandemia) em um processo evolutivo sem precedentes em sua história. Como exemplo, seu mais reconhecido e mundialmente difundido ícone, o ceviche, atualmente é figura fácil em qualquer churrascaria ou restaurante a quilo brasileiros — ainda que não raro em versões pouco ortodoxas.
Revolução na cozinha
Esse protagonismo — melhor dizendo, revolução — tem nome e sobrenome: Gastón Acurio, chef restaurateur, 54 anos. E não apenas porque suas duas casas, Astrid y Gaston e La Mar (franquia que já teve filial em São Paulo), são habitués de longa data do Latin America's 50 Best Restaurants.
Nascido em Lima, Acurio atuou incansavelmente junto a produtores, agricultores, chefs e cozinheiros, de tal forma a tornar-se naturalmente o embaixador mundial da cozinha peruana, fazendo de sua liderança o dínamo para que a comida se convertesse em motor do desenvolvimento da nação. Conseguiu, de certa forma, mudar o país, em que pesem os não poucos problemas socioeconômicos que ainda persistem em terras peruanas.
Criador do monumental festival Mistura da Gastronomia Peruana, viu o evento cutucar a autoestima peruana a ponto de ser literalmente abraçado pelo povo, reinando por uma década (parou em 2019, mas deve voltar) como a maior feira de gastronomia da América do Sul — nada a ver com (olha o clichê) "feirinhas gastronômicas" faria limers.
Ao longo de sua duração, o Mistura atraia milhares de visitantes estrangeiros, (no bom sentido) atônitos com a riqueza culinária peruana e seu palpável efeito social — e que, obviamente, esbaldavam-se em sabores fartos, baratos e memoráveis.
Acurio fez mais: fundou a APEGA (Sociedad Peruana de Gastronomia), associação sem fins lucrativos cuja atuação levou cerca de 70 mil jovens estudantes peruanos às escolas de gastronomia, em dados de 2019.
Sua atuação solidificou políticas governamentais para o segmento. Tamanho legado alavancou não apenas uma bem-sucedida carreira de escritor, com diversas obras publicadas.
Acurio chegou à TV peruana. Virou persona pop. Desde então, é mais ouvido e respeitado que políticos de seu país.
Tradição e inovação
"Na verdade, o Peru sempre foi uma potência em termos de comida e cozinha", frisa o chef Virgílio Martinez, proprietário do Central, há anos no topo do ranking do Latin America's 50 Best Restaurants.
"Não é nada novo. O que acontece é que, quando a gastronomia começou a ter a visibilidade que tem hoje, nós já tínhamos uma história, uma fundação sólida", acredita.
No Peru, trabalhamos a agricultura desde a época pré-incaica, apurando sementes e espécies. Então, não surpreende nossa variedade e riqueza de ingredientes".
Faz sentido: no Peru há mais de 50 tipos de milhos, dezenas de diferentes pimentas e incontáveis tipos de batatas.
Mas não é só isso. "O que conhecemos hoje como cozinha peruana é uma mistura de tradição, inovação e modernização de culturas que vieram a nosso país: chinesa, japonesa, espanhola, portuguesa, etc. É um crossover de mais de 500 anos de fusões". Várias cozinhas fundindo-se em uma só, personalíssima, define o chef.
Existem no Peru inúmeras cozinhas regionais, todas fascinantes: a andina, a da selva, a do mar, a creole, a de altitude. Tradicionais e ao mesmo tempo inovadoras".
Familiarizado com o Brasil por conta de constantes vindas a São Paulo, Virgílio não só virou amigo dos chefs de restaurantes que visita e aprecia (A Casa do Porco, Corrutela, Maní, etc), como elogia a "moda peruana" que, não é de hoje, incorporou-se ao cenário gastronômico da Pauliceia — inúmeros endereços, dos Jardins, Itaim e Vila Madalena ao centro da cidade, onde de fato tudo começou.
Da "chapa quente" ao Morumbi
Retrocedendo até o ano 2000, encontramos o hoje chef e empresário Edgard Villar em maré baixa. "Cheguei paupérrimo ao Brasil", conta.
Trabalhei com um monte de coisas, vendi artesanato na 25 de Março, mas perdia muito produto para o rapa. Até que tive a ideia de difundir a comida peruana, que na época praticamente não existia aqui. E comecei a vender marmitas na rua".
Sem placas nem qualquer identificação, a primeira unidade de seu restaurante, o Rinconcito Peruano, ficava — e lá permance — em um pedaço "chapa quente" da rua Aurora, no "centrão" — uma simples "portinha", frequentada apenas pela colônia peruana de São Paulo.
"Por conta da variedade de climas, o Peru é muito rico em ingredientes. A comida peruana é fresca, saudável e muito deliciosa", advoga Villar.
"Nunca tive dúvidas, foquei e nunca abri mão de difundi-la". O jogo começou a virar por volta de 2010, quando brasileiros, aos poucos, foram se chegando.
Tive que fazer algumas adaptações, como diminuir a acidez. Não só pela falta de ingredientes 100% peruanos, mas por conta do caráter forte e picante da comida".
Deu tão certo que o Rinconcito caiu nas graças de diferentes públicos e "viralizou-se" em uma rede que já contabiliza dez endereços, quatro deles em vizinhanças "in": Pinheiros, Morumbi, Tatuapé e Vila Leopoldina.
"Tenho orgulho dessa trajetória", comemora Villar, que elege como um dos píncaros da carreira já ter cozinhado na A Casa do Porco, a convite do chef Jeffinho Rueda — e a quatro mãos com outra "fera", o conterrâneo Mitsuharu "Micha" Tsumura, ourives do Maido, de Lima.
Fico feliz com esse reconhecimento, e orgulhoso em ver restaurantes peruanos brilhando não apenas entre os melhores da América Latina, mas do mundo".
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