Além do moonshine: produção de bebidas clandestinas é histórica e global
Quando a Lei Seca imperou nos Estados Unidos, proibindo fabricação, venda, distribuição e importação de bebidas alcoólicas no país entre 1920 e 1933, um dos efeitos colaterais mais conhecidos foi a produção clandestina de álcool. A fim de driblar os perrengues da proibição, homens e mulheres, especialmente no leste e no sudeste do país, faziam um álcool cristalino, à base de grãos e pesado como o diabo.
O nome, "moonshine", viria do fato de que esses camponeses trabalhavam em alambiques escondidos e destilavam furtivamente, sob a luz do luar. Só que isso é mais poesia do que história.
É o que defende o pesquisador americano Kevin R. Kosar no livro "Moonshine - A Global History" ("Moonshine - Uma história global", sem edição brasileira). Como o título antecipa, o moonshine não surgiu nesse contexto de Lei Seca, não tem nada a ver com uma suposta clandestinidade noturna e, mais importante, não tem nada de americano.
Quer dizer, não é algo essencialmente americano. A participação dos EUA nessa história é, sim, importante. Mas é superdimensionada (algo comum em se tratando da superpotência).
Bebidinha caseira (e global)
O motivo é muito simples. A humanidade dominou a destilação para fazer bebidas alcoólicas de maneira constante há cerca de 800 anos. Essas bebidas eram reservadas a camadas específicas da sociedade ou eram vendidas por um preço inacessível a muitos. Logo, desde essa época havia aqueles que tentavam driblar tais dificuldades.
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Tudo que é tipo de fruta, tubérculo ou grão pode ser, e já foi, usado na fabricação dessas bebidas. Uvas, peras, maçãs, pêssegos, figos, nozes, dendê, cana-de-açúcar, batatas, cerejas? O milho usado comumente nos uísques caseiros dos EUA é só mais um tipo deles.
Hoje, do Afeganistão ao Vietnã, de Cuba a Uganda, existem produções artesanais e clandestinas de bebidas baratas. No Brasil, além dos alambiques caseiros à margem da legislação sanitária que se espalham de norte a sul do território, a manifestação mais conhecida nesse sentido é a maria-louca, aguardente fabricada em presídios dos modos mais criativos possíveis.
Grãos de arroz ou de pipoca, um balde, pano, açúcar, cascas de fruta e uma mangueirinha costumam ser os utensílios e matérias-primas usadas.
A origem exata do moonshine é difícil de ser cravada por causa de sua natureza clandestina. Seus fabricantes não deixavam livros de receitas nem diários, até porque muitos eram analfabetos. É uma história basicamente oral, que, segundo Kosar, inclui "homens da lei, fazendeiros carniceiros, funileiros inteligentes, contrabandistas, gângsteres cruéis, poetas pomposos, sorrateiros habitantes de pântanos e montanhas e adolescentes em busca de emoção".
Em termos simples, a história do moonshine atesta o desejo dos humanos pela embriaguez. As pessoas não bebem moonshine para ficarem mais altas, mais fortes ou mais espertas. Elas bebem para ficar bêbadas. Rápido."
Brilho da Lua?
Segundo o Dicionário Oxford, maior referência histórica da língua inglesa, o primeiro uso do termo "moonshine" ("brilho da Lua") data de 1425. No século 16 ele começou a ser usado metaforicamente para denotar algo com um brilho agradável e imaterial, tipo o reflexo do luar na água.
Em 1785, o lexicógrafo Francis Grose publicou um dicionário de gírias usadas nas áreas mais decadentes de Londres — e elas não eram poucas. Poucas décadas antes, a cidade viveu o auge da Febre do Gim, período em que o consumo de gim explodiu nas classes populares, causando ondas de violência e doenças relacionadas ao abuso de álcool.
O dicionário de Grose incluiu um verbete para "moonshine" que dizia ser um trago de aguardente contrabandeada da costa de Kent e Sussex. Foi a primeira conotação alcoólica ao "brilho da Lua".
No século 19, o termo já havia cruzado o Atlântico e aparecia na imprensa. O jornal "The New York Evening Post" noticiou uma manufatura de uísque ilegal em 1877. No ano seguinte, o "New York Times" reportou uma emboscada policial em Cincinnati. Houve troca de tiros, mas o produtor, Tom Mallinee, escapou.
De acordo com o diário, o esquema de Mallinee, maior produtor de moonshine da região, era tão azeitado e sistematizado que envolvia até mesmo um pacto de fidelidade com a clientela. "O resultado é que todo cidadão em um raio estendido não só se recusa a testemunhar contra ele como também não providencia comida ou alojamento aos policiais", dizia a matéria.
Foi nessa época também que surgiu a associação da luz do luar à produção sorrateira de bebida clandestina. Os fabricantes de moonshine se espalharam por todos os estados americanos, e não só na região dos Apalaches e no sul país, onde a prática ficou mais famosa.
Apelo atual
Na era da Lei Seca, o moonshine explodiu e virou fenômeno cultural, riqueza para a máfia e sinônimo de subversão. Isso é compreensível e fácil de entender.
Mas Kosar questiona: "Por que o moonshine existe no século 21, em sociedades em que conglomerados multinacionais enchem lojas e supermercados de destilados seguros, legalizados e acessíveis? Por que um consumidor escolheria comprar um moonshine possivelmente letal quando vodca, rum e uísque de boa qualidade podem ser comprados a preços baratos?".
Por mais baratos que sejam, não são baratos para todas as camadas sociais. Também não são baratos em todos os países. Muitos impõem pesadas taxas às bebidas, justamente para não deixá-las tão acessíveis.
Ainda assim, o livro de Kosar levanta uma questão mais ampla. "Aprendi que pessoas diferentes bebem por razões diferentes", ele escreveu.
"Em alguns casos, é parte significativa da cultura. Para outros, é um ato de rebelião política: beber moonshine é uma forma de driblar os impostos e as regulações do governo. Entre geeks e tecnófilos, produzir moonshine é visto como um desafio intelectual: como aproveitar o conhecimento científico a fim de produzir o melhor e mais puro destilado possível. Outros, especialmente os jovens, veem apelo em sua natureza ilícita."
Nos EUA, surgiu no início deste século a moda de emular os bares clandestinos da época da Lei Seca, que ficavam escondidos atrás de portas insuspeitas e onde as pessoas deveriam, ou ao menos tentar, falar baixo. A ascensão desses novos "speakeasy", como são chamados, andou mais ou menos de mãos dadas com o ressurgimento da coquetelaria — afinal foi nessas primeiras décadas do século 20 que surgiram muitos drinques clássicos.
A moda acabou chegando a diversos cantos do Brasil. Hoje você pode bebericar um old fashioned em um "speakeasy" em Salvador ou usar uma senha para entrar em um bar "secreto" em Santos. Em São Paulo, cuja lista de estabelecimentos do tipo só cresce, a cervejaria Juan Caloto inaugurou, no ano passado, o Esconderijo (no bairro da Vila Mariana).
O bar, "secreto", evidentemente, segue a temática spaghetti western da cervejaria, aquele visual dos filmes de velho oeste produzidos na Europa nas décadas de 1960 e 70. Este ano, em parceria com a destilaria Geest, a marca lançou seu próprio moonshine, um uísque não envelhecido chamado El Miraculoso Calibrador de Mira de Widowmaker Joe. Sim, o nome é essa fanfarronice mesmo.
O uísque da casa é feito com malte de cevada, centeio, milho e malte turfado escocês. O bar o oferece em doses, coquetéis e algumas garrafas numeradas.
O moonshine sempre foi associado a álcool de qualidade duvidosa. A ideia é combinar essa aura de clandestinidade com o desafio de fazer uma bebida macia e saborosa", diz Marcelo Bellintani, sócio do Esconderijo.
Nos EUA, a onda dos "speakeasy" já mostra sinais de cansaço. Alguns críticos o consideram um clichê que já cumpriu seu papel, que era dar um novo gás à coquetelaria. Hoje, porém, eles seriam lugares idênticos, sem identidade e que se prestam apenas a cobrar caro pelos serviços.
No Brasil, a história é outra. Os "speakeasy" seguem se espalhando. Se tudo der certo, a Juan Caloto quer fazer mais tipos de moonshine, inclusive com cachaça. "Maria-louca? É uma ótima ideia!", diz Bellintani.
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