A Chapada Diamantina agora também produz vinhos, e muito bons
Com uma altitude superior a mil metros e temperaturas amenas, a Chapada Diamantina, um dia famosa pela mineração de diamantes e hoje conhecida pelo turismo de natureza, se transformou em um dos mais promissores polos de produção de vinhos finos no Brasil. Tem apresentado um estilo de vinhos muito diferente daqueles do Nordeste que conhecemos. Seus traços mais marcantes são a ótima acidez e a grande variedade de aromas.
No futuro, a inauguração da vinícola Uvva, Cepas Diamantinas, em Mucugê, em março, certamente será vista como um dos marcos principais do surgimento dessa nova região vinícola. Projeto ambicioso, a Uvva foi desenhada para atrair o consumidor experiente de vinhos e o turista de alto padrão.
Seus 52 hectares plantados com uvas viníferas a 1150 metros de altitude foram traçados dentro de um círculo onde as várias parcelas formam um labirinto para o visitante se perder entre os vinhedos e (no futuro) encontrar pelo caminho obras de arte e espaços de contemplação. Dá para dizer que o conjunto foi concebido pela arquiteta Vanja Hertcert também para ser visto de cima, quem sabe, de um balão.
"A Uvva foi pensada para ser diferente de tudo o que tem no Brasil", diz Fabiano Borré, sócio e CEO da Fazenda Progresso, à qual a vinícola pertence.
As visitas são exclusivas, para grupos pequenos, de no máximo 8 pessoas. Puxamos pela brasilidade, os móveis são de arquitetos e designers nacionais como Sérgio Rodrigues, Arthur Casas e Jader Almeida. Dentro da cave, temos um espaço para exposições de arte"
O projeto completo inclui ainda um restaurante, previsto para inaugurar nos próximos dois meses, e um hotel, ainda só no papel. Na época de seu lançamento, falou-se em um investimento total na casa dos R$ 50 milhões. Muito já foi investido (e ainda será) em barricas de carvalho, tanques de aço e equipamentos com tecnologia de ponta para a produção de 300 mil garrafas (meta para 2024) de vinhos de primeira linha.
A produção na safra de 2019 foi de 55 mil garrafas. É a primeira a ser comercializada, mas a sexta a ser produzida. Todas as anteriores serviram como teste.
Colheita única no mundo
E os vinhos? Tanto os cinco tintos quanto os dois brancos, apesar de serem de vinhedos novos, plantados a partir de 2012, têm recebido respostas bastante positivas de quem os degusta. São equilibrados, elegantes e têm uma boa variedade de aromas. Por enquanto, são vendidos apenas no site da vinícola ou no local. Os preços variam de R$ 143 a R$ 350. As variedades são francesas e a colheita é feita no inverno.
A colheita de inverno está por trás de todo o movimento de expansão da fronteira vitivinícola brasileira e do surgimento de novas regiões produtoras já que em boa parte do Brasil, na época natural da colheita, o verão, chove demais, o que dificulta a produção de uvas viníferas por propiciar o surgimento de doenças.
Colher em julho e agosto é possível graças à técnica da dupla poda desenvolvida nos anos 2000 pelo agrônomo Murillo de Albuquerque Regina, então pesquisador da Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais).
"O Brasil é o único país do mundo, que eu saiba, onde há colheita de inverno", diz o agrônomo e enólogo Giuliano Elias Pereira. Pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) Uva e Vinho, Pereira é responsável pelos estudos de desenvolvimento da vitivinicultura na Chapada Diamantina.
O início de tudo
Alocado por anos na Embrapa Semiárido, com sede em Petrolina, Pereira também esteve à frente de muitas pesquisas que deram suporte aos produtores do Vale do São Francisco, na fronteira da Bahia com Pernambuco, a primeira região vinícola do Nordeste a se destacar.
Em 2009, Giuliano Elias Pereira foi convidado a participar do projeto de cooperação entre a Embrapa, a Secretaria de Agricultura da Bahia e a Cave Coopérative des Riceys, da região de Champagne, de avaliação da viabilidade de produção de uvas viníferas em Morro do Chapéu, na Chapada Diamantina. Cabia a ele toda a parte científica.
"Em 2010, plantamos uma série de variedades para testar e a primeira colheita aconteceu em 2012", conta. Pereira e sua equipe levaram então as uvas para a Embrapa de Petrolina e lá produziram os primeiros vinhos. "Ficaram espetaculares", afirma.
Esteve junto a quase todos os projetos que se desenvolveram na região a partir daí. Acompanhou as plantações de boa parte dos vinhedos. Ao lado de proprietários e enólogos de vários empreendimentos, fez a vinificação das uvas em seu laboratório de Petrolina.
A descoberta da Chapada
Quem teve a ideia de que em Morro do Chapéu podia se fazer vinho, no entanto, não foi Pereira. O primeiro a pensar na possibilidade foi outro agrônomo: Jairo Vaz, mineiro que trabalhava com uvas de mesa em Petrolina e Juazeiro, atual proprietário da Vinícola Vaz. Ele recorda:
Quando estive na Chapada em 2008, achei que ali era possível produzir uvas viníferas. Em minhas andanças pelo mundo, observei muito as características das regiões vinícolas. E, ali, tinha todas elas. Então, convidei o amigo Christian Jojot, presidente da Cave Coopérative des Riceys, para vir à chapada e dar sua opinião"
O francês concordou com ele. Vaz e Jojot, então, percorreram várias cidades da região e acabaram decidindo que o melhor lugar para se comprar uma terra seria Morro do Chapéu, pelo fato de a cidade possuir uma estação meterorológica e ter já um estudo geológico completo. Vaz comprou, então, a Fazenda Alto do Bonito de 54 hectares em Morro do Chapéu.
Em fevereiro de 2009, no entanto, foi convidado para ser superintendente de Agronegócios da Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia e teve de colocar o seu projeto de lado por um tempo. Porém, não abandonou a ideia de que a região era boa para vinho e decidiu promover o desenvolvimento da vitivinicultura no local.
Foi aí que ele procurou o Giuliano Elias Pereira da Embrapa. Juntos, os dois agrônomos conseguiram levar o então governador Jaques Wagner para Champagne, na França, e o convenceram a colocar 400 mil reais do governo estadual no projeto.
"Em 2014, a Embrapa fez um relatório certificando a viabilidade da produção de vinhos na região", conta Vaz. "Com isso, a secretaria de agricultura fez o zoneamento agroclimático da região para o plantio de uvas viníferas. E os interessados em produzir vinhos puderam ter acesso a crédito. Hoje são quatro vinícolas só em Morro do Chapéu."
Depois de pavimentar o caminho, Vaz largou a secretaria e voltou a se dedicar ao próprio projeto. Em 2016, começou a plantar uvas em sua fazenda, só variedades francesas. Ainda hoje não tem certeza se fará só vinhos de inverno ou se terá duas safras. O terroir permite isso também, porque nunca fica muito frio. "Ainda estamos experimentando", diz. "Em 2019, só colhemos no inverno. Em 2020 e 2021, fizemos duas safras de algumas variedades".
A Vinícola Vaz tem uma instalação industrial com capacidade para produção de 5 mil litros. O empresário, no entanto, está de olho nos negócios a surgir na região, por isso, está construindo uma adega com capacidade para processar 200 mil litros, em parceria com o grupo Luvison, produtores de vinho e de equipamentos para vinificação em Flores da Cunha, na Serra Gaúcha. A ideia é oferecer o serviço para as vinícolas que forem surgindo. A aposta é de que surgirão várias.
Terra de vinícolas
Há espaço para negócios de todos os tamanhos. A Vinícola Reconvexo, por exemplo, foi montada com recursos próprios de três professores universitários de Salvador. "Somos três engenheiros, três enófilos", diz Rafael Bezerra.
Há uns anos montei um pequeno laboratório num quarto da minha casa em Salvador e comecei a brincar de fazer vinho com uvas compradas. Um dia, vazou tudo pelos corredores. Minha mulher falou para eu escolher: ela ou vinho. Já tinha ouvido falar da Chapada. Então, fui investigar e montei um plano de negócios"
Os amigos João Carlos Ramos e Murilo Ribeiro se juntaram a ele. O trio comprou uma terra em Morro do Chapéu e foi plantando aos poucos. Em 2019, plantaram 1 hectare, parte malbec e parte syrah. Hoje já estão com 2,5 hectares e construíram uma pequena adega. Tudo sozinhos. Afinal, são engenheiros. Ramos, que tem curso de sommelier e fez o Winemaker da Vinícola Miolo, programa de um ano no qual consumidores comuns participam ativamente da produção de um vinho, assumiu o papel de enólogo, com a ajuda remota de enólogos amigos.
Montaram também uma estrutura para receber turistas. Muita gente tem vindo. "Temos um wine garden", conta Bezerra. "O visitante faz o tour, a degustação de dois vinhos e depois pode aproveitar o jardim para um piquenique. Além dos nossos vinhos, vendemos kits de embutidos e queijos da região. Pusemos placas na estrada. As pessoas, às vezes, estão passando e entram, mas já recebemos também gente curiosa para conhecer a região nova".
O jovem Nordeste
Na verdade, o Nordeste todo ainda é novidade enquanto região vinícola. Calcula-se que ali se produziram 8 milhões de litros de vinho fino (variedades europeias) em 2021, e mais cerca de 13 milhões de litros de vinho de mesa (variedades americanas).
Além de na Chapada Diamantina, há iniciativas isoladas em Alagoas, Sergipe e, na própria Bahia, na fronteira com Goiás e Minas Gerais, a fazenda Santa Luzia, do grupo Trijunção, que pertence a José Roberto Marinho, leia-se Rede Globo, está com um projeto bastante avançado em parceria com a Embrapa. Ali também os vinhedos estão a mais de mil metros de altitude e a colheita será de inverno.
Tudo é muito recente, porém. A área mais tradicional é o Vale do Rio São Francisco, onde nos anos 1980 começaram a surgir plantações de uvas viníferas. A região só apareceu para o Brasil, no entanto, no início dos anos 2000, quando foram fundadas as duas maiores vinícolas da região, a Terranova, do Grupo Miolo, em Casa Nova, na Bahia, e a Rio Sol, hoje do grupo português Global Wines, em Lagoa Grande, Pernambuco.
No mundo, as uvas viníferas costumam ser cultivadas entre os paralelos 30 e 50, zonas temperadas, que têm inverno. O Vale do São Francisco fica no paralelo 8, quase ao lado do Equador, praticamente não tem inverno, o sol bate o ano todo, a terra é seca, não tem água. Toda a viticultura depende de irrigação.
"Na escola, aprendi que a uva precisa de 400 horas abaixo de 10 graus para frutificar", conta Miguel de Almeida, responsável pela Terranova. "No Vale do São Francisco, não tem um segundo abaixo de 10 graus. Ainda assim, dá uva e boa. É a terra onde o impossível é possível. O Vale do São Francisco é um terroir incrível, terrivelmente desconhecido dos olhos e narizes dos brasileiros." Como diz o enólogo português, "o Brasil ainda está por se descobrir".
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