Onda gelada: surfe nos lagos é aventura radical abaixo de zero no Canadá
Surfe, para muita gente, lembra sol, praia, pé na areia, calor, verão. Também era assim para o catarinense Antonio Lennert (@surfthegreats), de 38 anos, até que a maré o levou a Toronto, capital da província canadense de Ontário, onde a temperatura é bem diferente da dos trópicos.
Lá, Lennert descobriu que é possível surfar na água doce (e gelada) dos Grandes Lagos e ajudou a construir uma comunidade de surfistas de lagos aberta à diversidade — e a imigrantes e aventureiros de primeira viagem.
FILHO DE IEMANJÁ
Antonio Lennert aprendeu a nadar antes de andar, a família brinca. Nascido em Joinville, maior polo industrial de Santa Catarina, da infância à juventude passou todos os verões no litoral, São Francisco do Sul. "Sou filho do mar, filho de Iemanjá. Cresci com o pé na areia", diz ele, que ganhou a primeira prancha aos 7 anos.
Não muito tempo depois, ele já sabia, era gay. E à época ser gay em uma cidade catarinense conservadora não foi fácil, diz.
Aos 20, então, decidiu sair do Brasil: deixou tudo para trás, inclusive um curso de design industrial, e foi primeiro para Connecticut, na costa leste dos Estados Unidos, para estudar inglês e trabalhar num cassino; depois, foi estudar mídia interativa na Califórnia, na costa oeste, onde reencontrou o surfe — e onde conheceu o médico canadense Lucas Murnaghan, um cirurgião ortopedista que também era apaixonado pelo mar, tanto que se especializou em fotografia subaquática.
Antonio e Lucas se casaram e, um tempo depois, se mudaram para Toronto, onde o médico tinha uma proposta de trabalho. Antonio se formou em design gráfico e abriu um estúdio no centro da cidade.
Às vezes ficava olhando o Lago Ontário, imaginando que seus dias de surfe tinham ficado para trás; e pensava:
Um lago imenso que lembra o oceano, não dá para ver o outro lado no horizonte. Se ao menos tivesse onda..."
'OLHE MELHOR, HÁ ONDAS LÁ'
Cinco são os Grandes Lagos, entre os Estados Unidos e o Canadá: Superior, Ontário, Michigan, Huron e Erie. Juntos, correspondem aos maiores lagos de água doce do mundo.
Durante uma viagem para as Bahamas, Antonio viu um cara surfando. Conversa vai, conversa vem, o camarada por acaso era de Toronto e contou que, na verdade, aprendeu a surfar nos lagos. Antonio não acreditou. "Ao voltar, olhe melhor, há ondas lá", ele lhe respondeu.
Antonio voltou e olhou. E viu. E se aventurou a surfar nas águas geladas dos Grandes Lagos. Na segunda vez que se lançou ao lago, conheceu o surfista peruano Larry Cavero e, na sequência, muitos imigrantes que também tinham saído de países onde o surfe era super comum e se instalaram em Toronto.
Só depois fui descobrir que já tinha uma comunidade muito pequena de surfistas raiz desde a década de 1960 — mas quem sabia os pontos onde dava para surfar não dizia para os outros"
Ao longo da década de 2010, Antonio, Larry e outros começaram a compartilhar experiências, ideias e informações sobre as ondas, os primeiros passos de uma nova comunidade de "lake surfers".
"Era 2014. Na época o Instagram estava explodindo. Fui surfar e na volta, no carro, estava pensando na imensidão dos Grandes Lagos — se juntar todos e pôr em uma linha reta, você tem umas doze costas da Califórnia e quatro costas do Atlântico dos Estados Unidos, é enorme e com comunidadezinhas por todo canto. Pensei: a gente precisa encontrar uma hashtag para postar fotos e começar a conectar todo mundo", lembra Antonio. Lucas sugeriu: #surfthegreats.
UM MERGULHO
Antonio mergulhou no surfe de lago. Começou a conhecer outros surfistas que, sem opções de lojas em Toronto, recorriam a pranchas usadas na internet ou dirigiam para cruzar a fronteira com os Estados Unidos e procurá-las em Bufallo. Também conheceu iniciantes que acabavam por se arriscar demais em busca de ondas.
Surfe de lago muitas vezes precisa lidar com píer congelado e muito, muito vento, você dá dois passos para frente e três para trás deslizando"
Além disso, lembra, não existia ainda "uma cena" canadense de surfe de lago, com ocasiões para o pessoal conversar além dos breves encontros no estacionamento dos lagos, com o rosto quase todo coberto por conta do frio de lascar.
Antonio teve a ideia de iniciar uma escolinha de surfe, para dar mais segurança aos iniciantes — fez treinamento com a Associação Internacional de Surfe, na Costa Rica. Depois, para reunir o pessoal, passou a organizar eventos e até fez camisetas no escritório de seu estúdio de design na Chinatown de Toronto.
Também começou a viajar pelo Canadá para descobrir outros pontos. "E tem altas ondas. Na costa leste, na Nova Escócia, por exemplo; na costa oeste, na Ilha Vancouver tem um lance Califórnia. No verão canadense, você surfa vendo árvores de pinhos ao redor, montanhas com neve lá atrás, vira e mexe um urso na praia, é lindo, coisa de outro mundo", conta. O lugar preferido é no Lago Superior, a 14 horas de carro de Toronto. Gire a galeria abaixo e veja imagens dos cenários e trajetos do surfe no lago e práticas da escola de surfe.
O visual radical do gelo, diferente, logo atraiu atenção de marcas como Rip Curl, Red Bull e Patagonia, que o procuraram para parcerias.
O surfe de água gelada estava explodindo, então bombou"
'COOL' O BASTANTE
Antonio começou a vender long john e pranchas na sua própria casa. Uma hora, a casa ficou pequena para o vaivém de surfistas experimentando trajes de surfe no quarto de visitas e, em junho de 2016, decidiu abrir a Surf The Greats (a hashtag proposta por Lucas), um misto de loja, café e centro para uma comunidade cada vez maior. "Tudo aconteceu de maneira muito orgânica", define.
"A última coisa que queríamos era começar um negócio de surfe e nos tornamos parte da indústria do surfe", diz o site oficial da Surf The Greats, que fica em uma área industrial de Toronto que virou hipster ("Tipo o Brooklyn de Nova York", diz Antonio).
Apesar de amarmos surfar — a cultura predominante não é algo que queremos participar. Nós entramos em lojas de surfe ao redor do mundo e sabíamos que nunca nos encaixávamos bem. Talvez não fôssemos locais o bastante, ou 'cool' o bastante, ou hétero o bastante" Antonio e Lucas, em manifesto da marca
Antonio saiu do estúdio de design e passou a se dedicar integralmente à Surf The Greats — e também faz as vezes de instrutor de ioga, surfe e stand-up paddle. Recentemente, viu sua história retratada no documentário "Fresh Water", de David Kalinauskas. O filme estreou no Canadá (no Crave, "a Netflix de lá"), na Austrália e na Nova Zelândia; em breve, deve ser lançado nos Estados Unidos e no Brasil. Veja o trailer abaixo:
David procurou Antonio depois de vê-lo em outro documentário, o "On Days Like These We Must Surf", dirigido por Jake Kovnat, um curta-metragem focado na história do peruano Larry Cavero, radicado desde 1992 no Canadá. Larry, e, segundo diz Antonio a Nossa, é "o padrinho da comunidade".
On Days Like These We Must Surf from Jake Kovnat on Vimeo.
BEM-VINDOS
"Fresh Water" levou quatro anos de produção. Após os primeiros anos, o diretor mostrou um teaser indicando que gostaria que o fio narrativo do filme fosse Antonio. "Todo mundo sabia que eu era gay, mas eu não tinha isso como uma bandeira fincada. Aí Lucas disse: cara, tem que fazer, tem que contar sua história". Antonio topou. No fim de 2019, a produção também foi gravar no Brasil, passando por Rio e Florianópolis.
No Brasil, Antonio procurou diversos surfistas LGBT para participar do filme, mas apenas Marta Dalla Chiesa e Lesley Cushing aceitaram, um sinal de que a sexualidade ainda é um assunto delicado nessas águas. No Canadá, por outro lado, Antonio vê uma abertura maior à diversidade sexual e também a imigrantes.
Gay e brasileiro, Antonio se sente em casa em Toronto e em Florianópolis. O coração também se divide entre o mar e o lago. "Morei muito tempo na Califórnia, já surfei no sul do Brasil, Austrália, Havaí, Nicarágua. Amo o mar, não consigo viver sem ele", diz.
Mas mar já tem muita 'crowd'. Ainda tem muita violência, rivalidade, treta por território. Nos Lagos, tem onda pra todo mundo"
Além de aulas, passou a fazer "surf trips", levando viajantes para experimentar essas ondas. Um deles foi o surfista profissional californiano Kevin Schulz, cuja viagem foi registrada no curta "Made in Canada", produzido por Mike Brownley.
"O surfista sempre quer conquistar a próxima fronteira. Com o avanço da tecnologia do long john, capaz de aguentar baixas temperaturas, dá para surfar com segurança na água gelada. Aí o pessoal passou a procurar o frio: Nova Zelândia, Noruega, Islândia, Alasca... e Canadá", conta.
Hoje tem bastante gente de fora que viaja pra surfar nos lagos e na costa canadense"
O MELHOR DOS MUNDOS
Lucas, marido de Antonio por 14 anos, morreu de câncer em março de 2021. De luto, Antonio voltou a Florianópolis. Instalou-se em uma casa na praia do Campeche. Agora a ideia, diz, é passar os rigorosos invernos canadenses, de dezembro a abril, no Brasil, e viver de maio a novembro no Canadá. Leva as lembranças de Lucas lá e cá.
"Tenho muita sorte de poder viver minha vida fora do armário, por causa das pessoas que lutaram para que nós pudéssemos viver essa vida, para que todos podermos ser o que somos", diz.
Para mim, todo trabalho deve envolver conscientização sobre isso no esporte e acolher a diversidade. E temos muito pela frente"
Antonio teve a sorte de viver um grande amor, de viajar e se reinventar um par de vezes. Atualmente, com a Surf The Greats engatilhada, está tateando novos projetos: gostaria de levar mais da cultura do Canadá ao Brasil e vice-versa. Ou, nas suas palavras, unir "o melhor de dois mundos".
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