Ao longo da história, leite foi visto como bebida de povos atrasados
No ano 98 d.C., o historiador romano Tácito escreveu "Da Origem e Situação dos Germanos", obra que descrevia a cultura e os hábitos dos povos que habitavam a fronteira norte do império. "Germânia", como o livro é mais conhecido, fornece uma visão que Roma tinha dessas tribos.
Sua comida é de um tipo simples, consistindo de frutas silvestres, caça fresca e leite coalhado. Eles satisfazem a fome sem preparação elaborada e sem guloseimas."
Duas décadas antes, Plínio, o Velho, no clássico "História Natural", tida como a primeira enciclopédia do Ocidente, falou a respeito:
Do leite, também, a manteiga é produzida; considerada o alimento mais delicado entre as nações bárbaras e aquele que distingue os ricos da multidão em geral."
Os romanos viam no leite e em seus derivados um alimento de gente simples e ignorante. Júlio César, quando invadiu a Grã-Bretanha, um século antes do tempo de Plínio, ficou chocado com a quantidade de leite que aqueles nortenhos consumiam.
Durante muito tempo, entre algumas civilizações, era costume enxergar o hábito de tomar leite como algo tosco, rude, de povos bárbaros e selvagens. É o que explica o jornalista americano Mark Kurlansky, que já escreveu livros dedicados ao bacalhau e ao sal, em "Milk!".
Vamos, César! Não se misture com essa gentalha
"Comedor de manteiga" era um termo que os gregos usavam para se referir aos trácios, os vizinhos do norte, antepassados dos búlgaros e de outros povos da Europa Oriental. Essa implicância tem uma explicação geográfica.
Em tempos pré-refrigeração, leite não se dava muito bem no calor do Mediterrâneo, pois estragava muito rápido. Além disso, e não menos importante, havia um substituto excelente para a manteiga, o azeite de oliva.
Azeite dura mais, pode ser levado ao fogo a temperaturas mais elevadas e, desde aqueles tempos, já era considerado mais saudável. Não à toa, ele é, ainda hoje, mais comum nas mesas em todos os cantos do Mediterrâneo do que a manteiga.
Ao norte dos Alpes, a situação era outra. Leite e seus derivados se adequavam às temperaturas mais frias, o que propiciou àqueles povos desenvolver esses produtos com o tempo. Os germânicos aperfeiçoaram a manteiga salgada. Celtas também tinham uma manteiga famosa.
Godos, francos e vândalos viviam em busca de novas áreas de pastagem. Hunos bebiam kumis, leite de égua fermentado — "um dos raros exemplos de bebida alcoólica de fonte animal", segundo Iain Gately em "Drink: A Cultural History of Alcohol" ("Bebida: uma história cultural do álcool", sem edição brasileira).
Isso não significava que o leite, especialmente o leite de vaca, fosse algo ausente do dia a dia no sul do continente. No Império Romano, aqueles mais próximos da fonte o consumiam, ou seja, os camponeses e a gente simples das zonas afastadas dos centros urbanos, os viajantes, os pequenos agricultores — o que também contribuiu para a associação entre leite e falta de refinamento.
No princípio, era diferente. A civilização romana valorizava mais o líquido branco. Rômulo, seu mítico primeiro rei, amamentado por uma loba, só fazia oferendas aos deuses com leite. Mas, conforme crescia até se tornar um império, Roma ia deixando o leite de lado e se rendendo aos encantos de outras bebidas, como o vinho.
Já o queijo era outra história. Adaptava-se melhor aos climas mais quentes e fazia sucesso por tudo que é lugar. Ricos e pobres o comiam em variedades duras, macias e defumadas, feitas nas cidades, no campo ou nas províncias distantes. O queijo dos celtas era famoso e desejado em Roma.
Na Saturnália, a maior festa do calendário romano e considerada, em certa medida, uma antecessora do Natal cristão, era tradição distribuir presentes. No século 1º d.C., o poeta Marcial listou seus queijos preferidos no livro "Xenia", que funcionava como uma espécie de guia de compras do feriado dezembrino.
Escolher bem as lembranças era algo apreciado. "Romanos de classes altas ficavam provavelmente muito ansiosos para que seus jantares e presentes refletissem de forma positiva seu status privilegiado", escreveu Paul S. Kindstedt, professor da Universidade de Vermont (EUA), no livro "Cheese and Culture" ("Queijo e cultura", sem edição brasileira).
Roma pode ter caído para os bárbaros fãs de leite no século 5º, mas tal concepção durou ainda bastante tempo. Na Idade Média, os ingleses torciam o nariz para o uso excessivo de manteiga dos irlandeses.
Quem começou a mudar isso foi um pequeno país que, pouco após conquistar a independência, virou uma temida potência. Glutões adoradores de leite, manteiga e queijo, os holandeses eram chamados de "cabeças de queijo" ("kaaskoppen") até pelos seus vizinhos e irmãos do sul, os flamengos.
Aonde a vaca vai?
Leite e derivados eram comuns nas mesas de ricos e pobres nos Países Baixos. Pintores como Floris van Dyck, Clara Peeters e Floris van Schooten eternizaram queijos em suas naturezas-mortas do século 17.
A poderosa marinha holandesa destinava a cada marinheiro uma ração de pão, manteiga e queijo. Isso foi possível, em boa parte, graças aos avanços de engenharia implementados no país. O famoso sistema de diques e barragens que aumentou a superfície do território fez crescer, consequentemente, a área de criação de gado.
A partir de cruzamentos bem-sucedidos, fazendeiros começaram a desenvolver as raças, entre elas a holstein-frísia, a ultrapopular vaca holandesa. "Os holandeses estavam começando a entender como alimentar o gado e a melhor forma de cultivar pastagens. Logo, suas vacas estavam produzindo mais que o dobro de leite do que as dos países vizinhos", segundo Kurlansky.
"Os Países Baixos viraram um império comercial e uma potência marítima e econômica. De repente, os cabeças de queijo eram considerados brilhantes."
Os outros europeus reconheceram o talento holandês e passaram a dar mais valor aos seus derivados do leite. Navegadores e exploradores portugueses, espanhóis, ingleses, franceses (e holandeses) levaram o costume a continentes onde não se criavam vacas para dar leite.
O talento holandês se estende até hoje. Mesmo com uma área pouco menor que a do Espírito Santo, essa pequena monarquia é um gigante agrícola, o segundo maior exportador de alimentos do mundo.
No Oriente
No Japão, até o século 20, dizia-se que alguém fedia a manteiga para se referir a um ocidental. Chineses viam com desdém o costume de beber kumis (ou airag, como os mongóis o chamam), típico da Ásia Central.
Originalmente, a humanidade era intolerante à lactose, e os índices hoje são mais altos em lugares onde a criação de gado e o consumo de laticínios chegaram mais tarde, como China e Japão. Mas a influência do modo de vida ocidental na classe média chinesa tem mudado rapidamente esse cenário. Iogurte, sorvete e outros derivados são populares e, hoje, a China é o terceiro maior produtor de leite do mundo.
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