Cães, gatos e tutores em situação de rua "se salvam" com carinho mútuo
Na linguagem universal dos cães, abanar o rabo significa estar feliz. O sinal de felicidade pode acontecer na iminência de ganhar um petisco, passear na pracinha ou brincar com a bolinha preferida. Não para os doguinhos desta reportagem.
Sem muitos recursos materiais como brinquedos ou "luxos" como petiscos e rações especiais, eles vivem nas ruas com seus tutores humanos em situação vulnerável e, apesar de todas as dificuldades, não faltam comida, carinho, cuidados, amor e muito rabo abanando.
É exatamente o que acontece com o Beethoven, um cãozinho SRD caramelo que é uma verdadeira máquina de balançar o rabo, principalmente quando João Batista, seu tutor, dá uma pausa nos afazeres do dia para "conversar" com o doguinho, não sem antes "vesti-lo" com o mais estiloso boné combinando com a guia e o peitoral.
Hoje vivendo sob os cuidados mais do que especiais de João, o bichinho com nome de músico já passou por poucas e boas na ainda curta vida de apenas 7 meses. Quando era filhotinho, vivia com um casal de humanos que logo desistiu dele.
"Apareceu esse casal que queria viajar para Santos, mas estava sem condições. Então, eu ajudei com R$ 150 para a passagem e eles me deram o Beethoven", diz João Batista, que chega a gastar R$ 300 mensais com a alimentação do melhor amigo, dinheiro que garante através da venda de latinhas que recolhe nas ruas de São Paulo.
Aos 47 anos, João já trabalhou como auxiliar de limpeza, jardineiro e costumava agarrar todas as oportunidades que apareciam de emprego até 2012, quando a situação ficou ruim e ele deixou de ter moradia fixa.
Apesar de não ter se imunizado contra a covid-19, por "acreditar em Deus", João não deixa Beethoven sem as vacinas recomendadas para sua idade e cuida muito bem do companheiro. Uma vez por mês, ele leva o cãozinho no carrinho de supermercado que utiliza para o trabalho diário até a ação da ONG Moradores de Rua e Seus Cães (@moradoresderuaeseuscaes), onde consegue banho, assistência veterinária e vacinas, além de ração, coleiras e guias novas para o companheiro.
Carinho dos dois lados
"Na verdade, existe um companheirismo total porque um ajuda o outro nessa dificuldade das ruas", afirma Edu Leporo, presidente da ONG MRSC.
Com 12 e 13 anos e já considerados cãezinhos idosos, Vem Cá e Roma são os melhores amigos de Popó, apelido com o qual é conhecido o ex-metalúrgico e ajudante geral, Vanildo Azevedo da Silva, 54 anos — 25 deles nas ruas.
"Se não fossem eles, eu já teria morrido. Eles dormem comigo na cama e me acordam quando percebem algum perigo. Não vendo", diz o tutor, que já teve oferta de R$ 400 pelos bichos.
Para a veterinária comportamentalista e cientista social Juliana Gil, tanto cães quanto homens sentem-se acolhidos e confortados nesta relação. "Vale mais saber que alguém gosta de você do que ter uma situação econômica boa, por exemplo através da venda dos animais", resume.
Já para os animais, os humanos significam carinho, comida e atividade física: "Se considerarmos que eles precisam de muito mais do que só uma caminha e comida boa, dependendo das condições, podem ter nas ruas uma vida tão boa quanto a que teriam dentro de uma casa", conclui.
Mariana Tadoni, veterinária voluntária da ONG MRSC diz que em alguns casos em que os animais necessitam de tratamento contínuo com remédios por 30 dias, por exemplo, a ONG fornece a medicação completa aos tutores.
"A maioria estabelece com esses bichinhos um elo de pai e filho tão forte que os cuidados com a saúde são seguidos à risca", diz Mariana.
Comida boa é comida dividida
Claudio NG, 48 anos, não pensa duas vezes antes de dividir a quentinha com os três "sobrinhos" caninos que nomeou como Revoada, Rajada e Mete o Louco. Carregando os três filhotes em uma antiga banheirinha de bebê que encontrou no lixo, o morador da Praça Princesa Isabel, na região central de São Paulo, convive também com a mãe dos filhotes, uma cadelinha que recebe os cuidados do irmão humano de Claudio.
O ser humano está meio difícil de se lidar. Os cachorros, mesmo sendo irracionais, são muito melhores", diz NG.
A praça onde ele, o irmão e os cãezinhos vivem abriga sem-teto e usuários de crack, além de muitos outros cães. "Cuidamos de todos, mesmo não sendo nossos. Dividimos nossa comida com eles", diz.
Apesar das demonstrações de amor e cuidados com os bichinhos, porém, não são todas as histórias que têm final feliz. Ao realizar ações com pessoas em situação de rua, Juliana Gil conheceu histórias de pessoas que eram ótimas quando sóbrias, mas que agrediam os animais quando usavam drogas.
Gatinhos salvadores
Não tão sociáveis quanto os cães, os felinos também acompanham humanos pelas ruas. Atualmente residindo em uma ocupação, Leontina Divina Moresti, 65 anos, já morou pelas ruas da cidade e sempre cuidou de gatinhos.
É a eles, aliás, que ela atribui o fato de ainda estar viva, já que a última ocupação onde morava desabou causando a morte de quem estava no prédio no momento do incidente.
Como o local não aceitava animais, deixei-os em um outro lugar, mas ia cuidar todos os dias. Naquele dia em que o prédio desabou, eu estava cuidando deles e, por algum motivo, eles não me deixaram ir embora. Eles me salvaram", diz.
Orientada pela veterinária da ONG a castrar os mais de 10 gatinhos de que cuida, Leontina vive "adotando" felinos que são abandonados por supostos "tutores". "Um deles foi salvo por uma moradora de rua ao ser jogado de um viaduto. Ela pegou o gatinho e doou para mim."
Malabarismo pelo mundo
Inseparáveis há quase um ano, a simpática cachorrinha Tormenta está com a artista circense de rua, Giuliana Perlo, 25 anos, desde que ela cabia em apenas em uma das mãos da moça.
Dos 600 gramas até os atuais 16 quilos foi um piscar de olhos. Giuliana, que é argentina, conheceu a amiga de quatro patas quando chegou ao Uruguai para uma convenção de malabarismo, atividade com a qual garante o sustento das duas pelas ruas dos países onde passa.
Em cima de uma bike e com a cachorrinha em uma cestinha, Giuliana viaja pelo mundo vivendo do circo e da caridade de quem a ajuda a cuidar da Tormenta.
"Trabalho para dar uma vida boa a ela. Até agora, nunca faltou nada para nós", diz Giuliana, que agora segue rumo ao Nordeste.
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