Estilista indígena imagina vestido ousado e político para o Met Gala
Criada em Niterói (RJ), a estilista Day Molina sempre esteve muito próxima da cultura indígena de sua família. A avó, que era da aldeia indígena Fulni-ó, do sertão de Pernambuco, foi tirada do convívio familiar e acabou fugindo para o Rio de Janeiro (RJ), mas não deixou suas raízes para trás. Passou a ancestralidade para a neta.
"A avó é muito importante para o povo indígena. Ela foi quem criou o meu espírito, o que me deixa em pé", diz a estilista a Nossa. "E é impossível desvincular a vida indígena da luta. Pela natureza do que a gente é. É difícil a gente nascer e não entender o que a gente é logo no início da nossa existência."
Segundo o Censo IBGE de 2010, há 305 povos indígenas no Brasil, somando 896.917 pessoas. São por volta de 0,4% da população brasileira. Day Molina, a mente criativa por trás da marca Nalimo, tem se destacado no mercado da moda não só por suas criações, como também pelo seu posicionamento social.
Como criadora, sou porta-voz de um movimento que está descolonizando a moda. Descentralizando as nossas referências na Europa e olhar o que é produzido aqui. Observar as nossas raízes indígenas, latinas"
A estilista assina um vestido criado para fashion film do E! Entertainment como esquenta para o MET Gala, evento de moda que acontece no dia 2 de maio, em Nova York, nos EUA. Veja o vídeo que abre essa reportagem, revelado com exclusividade para Nossa.
Junto com a sua assistente Gabrieli Lecoña, Day criou um vestido que representa a origem da América Latina. Em sua simbologia, a região é parida por uma mulher originária, filha da terra Abya Yala (como o continente é chamado na língua do povo Kuna, ameríndios do Panamá e noroeste da Colômbia).
Antes da chegada dos colonizadores, essa terra já existia em seus hábitos, costumes, dialetos. Já existia uma sociedade, uma origem que era parida por uma mulher indígena. O vestido quer compreender o que é esse continente e a origem dele. E a origem da América Latina é indígena" Day Molina
O bordado faz uma menção ao mapa do continente, enquanto a manga, com maxivolume em camadas, lembram uma flor e, também, uma vulva. As franjas vermelhas são simbologia para o sangue, que se derrama.
O que precisamos enxergar nesse vestido é que os povos indígenas existiam aqui há milênios. Elas não começam a existir quando o colonizador chega. Quero trazer à luz uma verdade histórica"
Para estrelar o fashion film e mostrar o trabalho, a estilista fez questão que a modelo fosse sua amiga Zahy, indígena do povo Guajajara. "Além de eu ter uma ligação profunda com ela, é uma forma de potencializar os talentos nativos, visibilizar a nossa existência. A gente precisa ser visto e respeitado naquilo que a gente faz etnico-culturalmente", comenta a estilista. Veja mais imagens do ensaio girando a galeria abaixo.
O som do silêncio
Nem sempre Day se sentiu à vontade para sacudir os ombros de quem pensa moda. A artista trabalha neste mercado há 15 anos. Apesar de sua ancestralidade ser uma parte central e importante em seu trabalho, ela passou boa parte de sua carreira silenciada.
"Antes eu não podia me expressar, porque trabalhava em marcas grandes e importantes que ignoravam a minha voz. No grande mercado, tive uma conduta de que precisava ficar quieta porque estava em um lugar embranquecido, racista, elitista e precisava trabalhar para sobreviver", diz.
Isso mudou há cinco anos, quando a estilista abriu a sua marca própria. Hoje, ela fala em alto e bom tom.
Agora que a minha voz é ouvida não vou desistir de falar o que precisa ser falado"
É que para Day, vestir é político — e poético. "É uma forma de trazer tudo o que você precisa dizer de uma forma artística. Uma pessoa olha um vestido e pode achá-lo lindo, mas ele também tem uma história. O posicionamento político também pode ser bonito, ele não está apenas no grito", fala a estilista. "O meu trabalho artístico também é uma ampliação da minha voz".
E, mais do que trazer representatividade e um olhar menos eurocêntrico, a artista também pretende falar sobre o impacto socioambiental da moda. "Minhas roupas falam sobre degradação do meio ambiente, crise climática. Os povos indígenas sempre falaram isso e, agora, as pessoas estão entendendo que os rios e montanhas são sagrados", afirma Day.
O fast-fashion está comprometido com a destruição do planeta. Por isso a importância de consumir de uma mulher indígena, que procura fazer uma moda mais devagar, produzida por pessoas e não máquinas"
De acordo com o Moody's Investors Service, a indústria da moda utiliza 10% do abastecimento industrial total de água e os têxteis de acabamento são responsáveis por 20% da poluição global da água industrial. Assim, por mais que Day se veja como um agente de mudança, a estilista ainda acha que há um longo caminho para o mercado de moda mudar verdadeiramente.
"Não vai ser uma coisa que vai acontecer no passe de mágica. É algo a longo prazo. Mas o que é determinante é que o pensamento da sociedade está mudando", fala a estilista. "Isso contribui para o processo de consciência, porque ela é libertadora. A moda é um comportamento social e isso reflete na forma que consumimos. E o mercado não é empático, ele vai correr atrás da mudança porque é movido financeiramente por comportamento."
Ufa. Tanta luta, no entanto, às vezes cansa. Mesmo uma pessoa cheia de determinação como Day. "É um enfrentamento acontece há 14 anos, então já lutei para caramba", suspira. Mas agora, de acordo com ela, não é hora de parar.
Quando me sinto cansada, eu me volto à espiritualidade ancestral, onde consigo me reorganizar, relocar. É onde consigo a força para fazer o que os meus ancestrais fazem há séculos: viver, resistir e fazer o mundo melhor para todo mundo. Antes de ser estilista, sou pensadora. Antes de ser pensadora, sou ativista. E antes de ser ativista, sou uma mulher indígena"
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