Mudanças climáticas favorecem vinhos, mas futuro desta vantagem é incerto
No mundo todo, é cada vez maior o número de boas safras de vinho. Isso porque as mudanças no clima, por enquanto, estão favorecendo o cultivo de uvas viníferas. A coleção Sete Lendários 2020, que chega ao mercado agora trazendo os sete vinhos ícones do Miolo Wine Group, é um ótimo exemplo disso. Para entender por que, voltemos até 2018.
Quando as uvas tintas da safra de 2018 chegaram às unidades de produção do Miolo Wine Group, o corpo técnico do grupo teve certeza de que conseguiria produzir todos os seus sete vinhos ícones: o Lote 43 e o Merlot Terroir, da vinícola Miolo, no Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha; o Quinta do Seival Castas Portuguesas, o Sebrumo Cabernet Sauvignon e o Sesmarias, da vinícola Seival, em Candiota, na Campanha Gaúcha Meridional; o Vinhas Velhas Tannat, da vinícola Almadén, em Santana do Livramento, na Campanha Gaúcha Central, e o Testardi, da vinícola Terranova, em Casa Nova, no Vale do São Francisco, Bahia.
Todos tintos nobres (mais de 15% de álcool), esses vinhos só são produzidos em safras especiais. São vinhos de guarda, caros (entre R$ 136,54 e R$ 1.075,86), feitos para durar décadas. Era a primeira vez que acontecia de todos serem produzidos numa mesma safra.
Essa conjunção, pensaram, era rara, não voltaria a acontecer tão cedo. Criaram, então, a coleção Os Sete Lendários, que hoje custa R$ 2.254,86.
No entanto, dois anos depois, quando a coleção 2018 estava sendo lançada, começou-se a chamar a safra 2020 de "A safra das safras''. Produtores de vinhos de todo o país bendiziam as condições climáticas daquele ano. Com o grupo Miolo, não foi diferente. As uvas estavam ainda melhores do que em 2018, e os Sete Lendários, claro, foram produzidos novamente.
E tudo leva a crer que vamos produzi-los na safra 2022 também", diz Adriano Miolo, diretor-superintendente do grupo.
Ciência explica
São três safras lendárias em cinco anos. Como explicar isso? "O avanço tecnológico certamente garante a produção de vinhos cada vez melhores", diz Adriano Miolo.
Mas, embora eu não possa afirmar com certeza, essas condições tão favoráveis parecem estar ligadas às mudanças climáticas. Na última década, tivemos o dobro de safras excepcionais do que na década anterior".
Observações do mesmo tipo costumam ser feitas por produtores de Bordeaux, da Toscana, do Chile, etc. No Brasil, nessas safras, a principal mudança não foi o aumento da temperatura, mas, sim, a diminuição das chuvas no período da colheita e da maturação das uvas.
"Nesta safra, não choveu em novembro, dezembro e janeiro na Serra Gaúcha e na Campanha", diz o agrônomo Henrique Pessoa dos Santos, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho.
"O que tivemos foi um ano seco e quente em comparação com os outros anos que são úmidos e quentes. Como estava seco, não tivemos doenças fúngicas. Além disso, no período de seca, as temperaturas se comportam como nos climas desérticos. Sem umidade para segurar o calor do dia durante o período da noite, temos dias quentes e noites frias. Cresce a amplitude térmica".
Doutor em fisiologia vegetal, ele explica que com o sol a planta faz a fotossíntese e a fruta acumula energia em forma de açúcar. Como qualquer ser vivo, usa essa energia para viver. A prioridade é o metabolismo primário, aquele essencial para a sua sobrevivência (respiração, transporte da seiva e a própria fotossíntese).
A energia que sobra vai para o metabolismo secundário: síntese de compostos como as antocianinas e os precursores aromáticos. Esse metabolismo secundário costuma acontecer à noite. Nas noites quentes, a planta gasta tanta energia com o metabolismo primário que não sobra muita energia para sintetizar os compostos necessários para um bom vinho.
Além disso, nos anos mais secos, os bagos ficam menores. Têm menos água. Há uma proporção maior de casca no volume total.
Irrigação na Serra Gaúcha
São anos que rendem vinhos melhores, em especial, em regiões como a Serra Gaúcha, onde é comum chover na colheita. Sócio-diretor do hotel Spa do Vinho, no Vale dos Vinhedos, o empresário Aldemir Dadalt e sua esposa, a jornalista Deborah Villas-Boas Dadalt, produzem desde 2005 o VE, um merlot de altíssimo padrão feito a partir dos vinhedos do hotel,que só é vendido internamente por R$ 480.
Não é produzido todos os anos. "As últimas safras foram tão boas que provavelmente teremos VE por três anos seguidos: 2020, 2021 e 2022", conta Deborah. Se ganharam na qualidade, perderam na quantidade. "Nos últimos anos, mais de 200 pés de videiras dos nossos vinhedos morreram por causa da seca", conta Aldemir.
Desde que assumiu as obras do hotel em 2004, o casal fundou também a vinícola Ales Victoria e implantou 18 he de vinhedos em volta do hotel. Agora, estão lançando o primeiro rótulo, o Ales Merlot (R$220,00), que será distribuído a partir do meio deste ano.
Aldemir era o presidente da Aprovale (Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos) quando foi constituída a Denominação de Origem Vale dos Vinhedos, em 2012. Na época, não se pensava que poderia faltar água na região localizada no encontro dos municípios gaúchos de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul, e incluiu-se uma proibição de irrigar. "Agora a Embrapa está sugerindo que se reveja essa regra", diz o empresário.
Fora do perímetro da D.O., a irrigação é cada vez mais comum. "Muitos produtores estão instalando sistemas de irrigação", diz André Gasperin, presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE).
Foram abertas linhas de crédito para isso. Com a irrigação, o clima da forma que está é perfeito para a viticultura. Você tem controle," completa Gasperin, que em sua vinícola Don Affonso, em Caxias do Sul, só trabalha com vinhedos irrigados.
Incerteza no horizonte
O futuro, no entanto, é incerto. Algumas consequências negativas já estão sendo sentidas. As geadas na primavera, por exemplo, que queimam os brotos e comprometem a safra. Se esquentar demais, também é problema. A acidez pode ser comprometida. "Especialmente no caso dos espumantes que precisam de muita acidez ", diz Gasperin.
Em Champagne, as mudanças climáticas ainda não começaram a afetar a qualidade do produto, garante a brasileira Rachel Ouvinha, diretora do Institut Georges Chappaz de la vigne et du vin en Champagne, que esteve no Brasil em maio para dar palestras na Wine Trade Fair, em São Paulo. "A qualidade continua excelente", afirma. "Mas estamos no limite".
Pensando no aquecimento, o Comitê Interprofissional de Champagne aprovou em 2022 o uso de uma nova casta mais resistente. Desenvolvida por meio da hibridação entre castas de champagne e castas americanas e africanas, a voltis tem mais de noventa por cento de material genético de vitis vinífera. Numa prova a cegas, degustadores experientes não conseguiram detectar a sua presença entre quatro amostras.
Poucos negam que os vinhos estejam melhores do que nunca. Muitos, porém, estão preocupados. "As temperaturas mais altas, de fato, ajudaram a termos safras melhores", diz Tancredi Biondi Santi, diretor da vinícola Castello de Montepó, em Maremma, produtora do famoso super toscano Sassoalloro.
Mas os eventos extremos já estão acontecendo: granizo, ventos fortes, chuvas loucas e ondas de calor. As produções já estão em risco".
Ou seja, se os vinhos estão melhores, talvez fosse hora de bebê-los como se não houvesse amanhã. Porque realmente pode não haver.
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