Além da galinha e do churrasco, corações de mais animais ganham receitas
"Haveria uma diferença entre as mortes a que assisto e as que não vejo?", foi o questionamento do crítico Jeffrey Steingarten* quando acompanhava a matança de um porco no Sul da França. E tudo por um cobiçado boudin noir, linguiça de sangue francesa que ainda leva pulmões, baço, bochechas, gordura, pele, cebola, especiarias e, claro, coração.
Mas será que o órgão goza do mesmo prestígio por aqui? "O coração tem essa questão simbólica de dar a vida e também está ligado aos símbolos religiosos", diz a historiadora da alimentação Rafaela Basso.
O de galinha é o "queridinho" dos churrascos brasileiros, mas inserir esse órgão de outros animais no receituário dos restaurantes atuais é tarefa minuciosa, da cozinha e do salão. "As pessoas que gostam obviamente vibraram, e as que não conheciam ficaram curiosas e experimentaram", fala o chef Rodrigo Oliveira, que mantém o Espetinho de coração de boi no Mocotó há cerca de um ano — cuja receita você vê ao final desta matéria.
Tanto no Balaio quanto no extinto Esquina, corações diversos já ocuparam o menu — de cordeiro, pato, galinha, porco. Rodrigo percebeu que como petisco, contudo, as chances de vencer o preconceito são maiores e o alimento pode até virar "hit do cardápio", em suas palavras.
A gente já serviu o coração como prato principal. Só que a pessoa vai comer um prato principal, provavelmente. Mas na hora em que vai beliscar alguma coisa, dividir com mais pessoas, ela se permite arriscar", admite Oliveira.
Comida de lembrança
Filho de pernambucanos, ele ressalta que na cozinha sertaneja se come de tudo e o coração é presença cativa nas paneladas locais, como o sarapatel.
A charcuteira baiana Bruna Moreira compactua dessas mesmas lembranças sobre o uso corriqueiro das vísceras na culinária do Sertão Nordestino. "Na minha cozinha eu trago muito do que vivi com as carnes na infância, por ser da roça. E por gostar também, eu tinha interesse em estar no açougue", confessa a cozinheira que não dispensa os miúdos desde que se entende por gente.
Seu prato favorito é a buchada, que leva o órgão vital do bode, e até já preparou um "coração de sol" no evento Mesa SP, em 2019.
"Varia muito de uma pessoa para outra, e das referências que ela tem de cozinha. Você pode fazer um coração com trufas e isso ser muito caro. Mas eu acho que dá para trazer de uma forma mais acessível, menos rebuscada", conta Moreira, que usou a técnica típica da sua região, a salga, para apresentar o produto na aula.
Igualmente inspirado nas próprias origens — dessa vez bolivianas —, o chef Checho Gonzalez, do Mescla, na Barra Funda, criou o Coração de Lula (receita ao pé da matéria). A entrada consiste em espetinhos de corações de galinha intercalados com o fruto do mar e servidos com molho de amendoim. Tudo fincado em um pedaço de batata cozida, como manda o figurino das anticucheras que tomam as esquinas das cidades andinas, sobretudo à noite.
"É para curar ressaca", justifica Checho sobre a comida de rua chamada anticucho — um espetinho de coração de boi, originalmente.
O segredo do sabor, segundo ele, está na mistura utilizada para marinar o coração de boi e as outras carnes que passaram a integrar o petisco tradicional. "Essa é uma adaptação livre", ele fala sobre seu Coração de Lula, "e é o mais rico do prato popular. Quem conta um conto aumenta um ponto!". Para o tira gosto, ele escolheu o coraçãozinho de frango exatamente pela fácil aceitação do público.
Tripa, coração, rim, fígado, língua eu tento colocar no restaurante, mas tem uma rejeição natural", desabafa.
Os segredos dos corações perfeitos
Para temperar os corações em casa, ele indica bater no liquidificador os ingredientes da salsa anticuchera — como alho, cebola, cominho, pimenta e orégano —, e deixá-los marinando antes de levar à churrasqueira.
Foi exatamente na iguaria vizinha que Rodrigo se inspirou para compor a entrada do Mocotó, porém adicionando condimentos que remetessem à culinária sertaneja. Depois de acrescentar à carne azeite, cominho, semente de coentro, pimenta do reino, páprica e colorau, ele indica prepará-la na frigideira (acebolada) ou na brasa, por exemplo.
Para o espeto, o pulo do gato é investir no preparo complementar: a farofa. "Para ficar ainda mais familiar o prato, servimos com uma farofa de manteiga, que é temperada bem delicadamente", entrega Oliveira.
Questão unânime entre os chefs é sobre o cozimento: tem que ser rápido. "Tem que ser meio rosinha", pontua o chef Pablo Inca, do Cora, no Centro de São Paulo.
O chef argentino já teve corações de pato no cardápio (receita ao pé da matéria) e recentemente incluiu um prato com língua bovina no menu. "Eu sempre fui de tentar entender o porquê e utilizar esses produtos que são deixados de lado. No mercado, a gente vê coxa, sobrecoxa, magret de pato. Onde estão as outras partes?", ele questiona.
Para preparar os corações em casa, o chef argentino compartilha dicas básicas: fazer uma marinada com vinagre de vinho tinto, azeite, alho, tomilho e talos de salsinha, dourar as unidades em frigideira bem quente, deglacear em vinho tinto, temperar com sal e pimenta, e servir depois de um pequeno descanso para atingir o ponto.
No caso de coração de boi, eu gosto muito como bife. O de cordeiro, para fazer guisados", ele sugere.
Ainda que o tabu exista, assim como Rodrigo, Bruna acredita que a textura muscular seja o que torna o coração mais palatável que outras vísceras e também ensina como trabalhar o órgão em casa.
"Quando você abre o coração, dentro tem as artérias e umas partes que são um pouco mais resistentes. O que eu faço é tirar essas partes, para que ele consiga ficar mais gostoso e mastigável", diz a cozinheira, que também é adepta de prepará-lo no molho, como se costuma fazer com a moela.
Quando a gente começa a lidar com isso, as receitas vão fluindo, porque você sempre relaciona com outra preparação", ela diz.
Ingrediente histórico
Mas não é só de anticuchos andinos, e de buchadas e sarapatéis sertanejos que já viveu o coração. No "Cozinheiro Nacional" — uma das primeiras obras do receituário brasileiro, publicada no final do século 19 por autor desconhecido —, corações de boi, de vitela e de carneiro aparecem em preparos variados: ensopados, guisados, refogados, fritos, assados e até em pães.
"São receitas muito distintas de embutidos e queijos feitos com cabeça de todos os animais. Desde a carne bovina, que era o animal pelo qual se tinha uma predileção, mas também os animais de pequeno porte, como carneiro e aves", rememora Basso, que ainda encontrou relatos do aproveitamento integral dos animais de caça pelos povos originários em outras publicações da época durante sua pesquisa.
"Tanto os indígenas e portugueses, depois os africanos escravizados, tinham outra visão de aproveitar o que o meio em que estavam inseridos poderia oferecer. A hierarquia das carnes é um pouco posterior", conta a historiadora sobre o consumo de pedaços considerados não nobres desde o início da formação do Brasil.
"A arma mais poderosa, no fim das contas, é mostrar que é gostoso", na opinião de Oliveira. E, para ele, o fato de a figura do chef extrapolar as paredes do restaurante cada dia mais é o que faz aumentar essa responsabilidade.
Usar dessa influência para mostrar o valor de produtos que muitas vezes são estigmatizados é um dos principais papéis desse cozinheiro moderno", ele finaliza.
*"Deve ter sido alguma coisa que eu comi - A volta do homem que comeu de tudo", Jeffrey Steingarten, Companhia das Letras
Receitas de coração
para todos os gostos
Espetinho de coração de boi
Receita de Rodrigo Oliveira
Ingredientes
- 1kg de coração de boi
- 80ml de azeite
- 30g de colorau
- 5g de pimenta do reino preta moída
- 20g de cominho
- 10g de semente de coentro
- 10g de páprica picante
Modo de preparo
Limpe o coração, tirando gordura e nervos. Corte em cubos médios. Misture todos os temperos em uma tigela e tempere o coração de boi. Distribua os pedaços em espetos e coloque 75 g de carne em cada um. Leve o coração ao forno a carvão por 5 minutos ou até atingir o ponto desejado. Retire e sirva com farofa de alho, pimenta de bico e coentro.
Coração de Lula
Receita de Checho Gonzalez
Ingredientes
- 4 espetos (receita abaixo)
- 1/2 batata cozida
- 100 g de molho de amendoim (receita abaixo)
- Quanto baste de molho de pimenta
- sal
Modo de preparo
Em uma chapa de ferro bem quente grelhar 4 unidades de espeto e colocar sal. Esquentar na salamandra 1/2 unidade de batata cozida. Em uma panela, esquentar 100 ml do molho de amendoim até a textura desejada, acertar sal e pimenta.
Montagem
Em um prato pequeno, colocar a batata em um canto. Colocar todo molho de amendoim por cima. Espetar um espeto na batata e os outros 3 espetos colocar no prato. Finalizar com pimenta do reino e 1 colher de serviço.
Marinada para 40 espetos
Ingredientes
- 1 kg de cebola
- 75 g de alho
- 40 g de páprica
- 30 g de cominho
- 15 g de orégano
- 100 g de água
- 50 g de óleo
- 50 g de vinagre
Modo de preparo
Bater tudo no liquidificador, até tudo ficar homogêneo.
Molho de amendoim
Ingredientes
- 1 kg de amendoim torrado
- 1 litro de água
- 20 g de sal
Modo de preparo
Bater tudo no liquidificador, até tudo ficar homogêneo.
Espetos
Ingredientes
- 4 unidades de espetos
- 16 unidades de lula marinada
- 16 unidades de coração de galinha marinado
Modo de preparo
Limpar os corações de galinha. Cortar a lula. Espetar 2 pedaços de lula (20g) e 2 corações de galinha (20g), sempre intercalando. De preferência, marinar por 24h. Colocar para marinar e sempre mexer os espetos na marinada.
Corações de pato, couve-flor e alho poró
Receita do chef Pablo Inca, Cora
Corações
Ingredientes
- 100 g de coração de pato
- 5 ml de vinagre de vinho tinto
- 6 g de alho laminado
- 10 ml de azeite virgem
- Tomilho e salsinha
Limpar os corações, retirando o excesso de gordura. Marinar com tomilho, talos de salsinha, alho laminado, vinagre de vinho tinto e azeite.
Creme de couve flor
Ingredientes
- 500 g de couve flor
- 500 ml de leite
- 200 g de creme de leite
- 40 g de alho sem casca
- Sal
- Pimenta branca
- Tomilho
- Louro
- Raspas de limão
Limpar e higienizar a couve-flor. Retirar as flores e cortar o talo maior em pedaços menores. Colocar em uma panela, junto com louro, tomilho, alho, leite e creme. Levar a fogo médio/baixo e cozinhar lentamente até a couve flor ficar totalmente cozida e bem macia. Retirar a parte sólida e colocar num liquidificador, processar, até obter um creme suave e delicado. Adicionar o líquido de cocção, se necessário. Temperar com sal, pimenta branca e raspas de limão siciliano. Reservar.
Alho poró
Ingredientes
- 6 un de alho poró novo
- 50 g de manteiga
- 15 g de açúcar
- Sal
- 100 ml de vinho branco
Limpar e lavar bem o alho poró. Colocar a manteiga, o açúcar, o vinho e o alho poró em uma panela baixa. Cozinhar a fogo bem baixo, com tampa, por 20 a 30 minutos aproximadamente ou até o alho poró ficar bem macio. Adicionar água se necessário.
Salsa verde
Ingredientes
- 1 xícara de salsa picada
- 1 colheres de sopa de tomilho desfolhado
- 2 colheres de orégano fresco desfolhado
- 1/4 de colher de chá de pimenta seca
- 1 dente de alho ralado
- 1 colher de sopa de vinagre de jerez ou de vinho tinto
- Sal
- 1 xícara de azeite extra virgem
Modo de preparo
Misturar todos os ingredientes, reservar.
Finalização
Em uma frigideira bem quente, colocar um fio de azeite e os corações, e junto o alho poró. Dourar bem tudo, retirar o alho poró e deglacear com vinho tinto. Apenas para levantar o fundo. Corrigir com sal e pimenta. Servir os corações com o creme de couve flor, o alho-poró, regar com uma colher de salsa verde e finalizar com flor de sal.
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