Ushuaia é mesmo o 'fim do mundo' ou só ganhou a fama? Veja 8 fatos curiosos
A Aerolineas Argentinas anunciou, em abril, que Ushuaia, no extremo sul da Argentina, vai ganhar um voo direto para São Paulo. A notícia agradou brasileiros que têm curiosidade para conhecer a tal "cidade do fim do mundo", mas que ficam com um pé atrás com o tempo gasto para se chegar lá.
A rota está prevista para começar a operar em 11 de julho. Até então, o percurso aéreo mais comum para Ushuaia era via Buenos Aires, partindo da capital paulista. Agora, com duas saídas semanais, às segundas e sextas, será possível ir direto a Ushuaia em pouco menos de sete horas. Sem os perrengues de conexões.
Para entrar no clima, separamos alguns fatos e curiosidades sobre a cidade mais austral da Argentina.
Árvores que tremulam como bandeiras
As árvores-bandeiras têm esse nome porque parecem flâmulas ao vento, todas "despenteadas" para um lado por causa das rajadas de vento da região.
Os ventos patagônicos são constantes e, na Terra do Fogo, ainda mais intensos. Fauna e flora, como sempre, se adaptaram às condições, e não há evidência maior do que as árvores-bandeira, que são consideradas um símbolo da região e podem ser vistas em passeios populares, como o da Isla Martillo, a ilha dos pinguins.
A árvore-bandeira não é uma espécie em si, mas um tipo específico de krummholz, nome que se dá a plantas e árvores retorcidas por ventos constantes e congelantes. Consequentemente, ela não é, também, uma exclusividade de Ushuaia. Há exemplos na Patagônia chilena, no norte dos Estados Unidos e no Canadá, além de outros países.
Certo, mas então quais as espécies de árvore-bandeira da Terra do Fogo? Em geral, são lengas ou então a faia-de-magalhães, originária do sul da Patagônia e considerada a árvore que brota mais ao sul do mundo.
O navio de Darwin veio antes dele
Ushuaia fica nas margens do Canal de Beagle, um estreito que liga o Atlântico ao Pacífico e separa a Ilha Grande da Terra do Fogo, onde fica Ushuaia, das ilhas menores, ao sul. Tem esse nome por causa do famoso navio em que Charles Darwin fez a viagem que o inspirou a formular a teoria da evolução das espécies.
Mas Darwin esteve só na segunda viagem do Beagle. Houve uma primeira, comandada por Pringle Stokes, que se matou em 1828. Um subalterno, o tenente Robert FitzRoy, então com 23 anos, assumiu o comando e se provou competente.
FitzRoy levou a missão até o fim. Voltou à Inglaterra e, em 1831, foi apontado capitão de uma nova expedição à Terra do Fogo. Para acompanhá-lo na tripulação e conduzir as pesquisas científicas, ele convidou o jovem naturalista Charles Darwin, de 22 anos.
"Terra do Fogo" num frio daquele?
Na primeira viagem de FitzRoy, ele teve atritos com os povos fueguinos. Eles roubaram um barco, os ingleses sequestraram alguns indígenas, mas no fim a diplomacia venceu.
FitzRoy retornou à Inglaterra com representantes dos yámanas, considerado o povo mais austral do mundo. Apesar de viverem no extremo sul do continente americano, eles usavam poucas roupas: limitavam-se a couros nos ombros e na cintura e cobriam o corpo com gordura animal.
Os yámanas comunicavam-se com sinais de fogo ao longo da costa. Fernão de Magalhães, ao ver isso no século 16 em sua viagem de circunavegação do globo, batizou o arquipélago de Terra do Fogo.
Quando o Beagle chegou pela segunda vez, eles acenderam o fogo, conta o jornalista americano Eric Simons no livro "Darwin Slept Here" ("Darwin dormiu aqui", sem edição brasileira).
FitzRoy e Darwin observaram do navio, e FitzRoy registrou ter ficado 'impressionado com a velocidade com que os fueguinos produzem esse efeito? No clima úmido deles, onde eu precisei, às vezes, de duas horas para acender uma fogueira'."
Os efeitos da colonização, em especial as epidemias, dizimaram a população dos yámanas e outros povos fueguinos. Hoje, o povo que deu nome à Terra do Fogo tem comunidade em Ushuaia e em outras cidades da região.
Já o nome de FitzRoy ficou mais ligado à província de Santa Cruz, vizinha ao norte da Terra do Fogo. O capitão britânico deu seu nome a uma montanha em El Chaltén, batizada de Monte Fitz Roy (escrito assim mesmo, separado) pelo explorador argentino Francisco Moreno — que também foi homenageado na geleira Perito Moreno.
Farol de literatura
O farol alvirrubro de 11 metros de altura instalado em uma ilhota em frente à Baía de Ushuaia, no Canal de Beagle, é uma belezinha. Colorido, relativamente pequeno e encravado em um pedacinho de terra desabitado, ele é um cartão-postal do bucolismo.
O nome oficial é Faro Les Éclaireurs, do francês para "os desbravadores". Mas as agências de turismo de Ushuaia, espertamente, o chamam de Farol do Fim do Mundo — aliás, muita coisa na cidade acaba ganhando a alcunha "fim do mundo", como deu para perceber (mais sobre isso adiante).
Acontece que algumas agências acabam se confundindo e, consequentemente, enganando o turista ao vender o farol como "aquele que inspirou Júlio Verne". De fato, o francês escreveu um romance intitulado "Le Phare du Bout du Monde" ("O Farol do Fim do Mundo", de 1905) que se passa na Terra do Fogo argentina.
O Farol dos Desbravadores só entrou em serviço em 1920, 15 anos depois da publicação do livro. O farol que inspirou o autor de "A Volta ao Mundo em 80 Dias" é outro, o San Juan de Salvamento, a noroeste da Ilha dos Estados, já no Atlântico Sul. É o farol mais antigo da Argentina e fica a mais de 280 quilômetros de Ushuaia.
Longe demais para ser um ponto turístico que compita de igual para igual com Les Éclaireurs, que é acessível em diversas excursões, fica pertinho do centro da cidade e é um símbolo presente em camisetas e ímãs de geladeira. Ir ao Salvamento requer muito mais tempo, empenho e organização.
Museu turístico
Se visitar o "verdadeiro farol do fim do mundo" for complicado demais, confira a réplica. O San Juan de Salvamento passou quase um século abandonado, em ruínas, até ser reconstruído. Uma cópia do original foi erguida no Museu Marítimo de Ushuaia, inaugurado em 1995 e um dos quatro museus que ocupam o antigo Presídio de Ushuaia.
O presídio é, sem dúvida, a maior atração cultural de Ushuaia. Sua história está no centro da formação da cidade.
Após FitzRoy, outros ingleses chegaram e se estabeleceram na Terra do Fogo. Só 40 anos depois os argentinos começaram a ocupar para valer a região. Eram professores, missionários e garimpeiros, atrás dos rumores de ouro na região.
No fim do século 19, o governo construiu um presídio, que funcionou até 1947. A cidade se desenvolveu em torno da prisão, como forma de povoar a Terra do Fogo e intimidar outros países que estavam de olho, especialmente o Reino Unido (os britânicos já controlavam as Malvinas desde os anos 1830).
Trem turistão (e castores intrusos)
No começo do século 20, os prisioneiros começaram a trabalhar na expansão do presídio. Uma linha de trem foi construída para o transporte de materiais, especialmente lenha.
A ferrovia tinha apenas 7 quilômetros. Saía da prisão, passava pela cidade, margeando a costa, até chegar a uma floresta. Era considerada a linha de trem mais mais austral do mundo até ser desativada pouco tempo depois do fechamento do presídio.
Em 1994, ela foi reinaugurada como trem turístico. Talvez um tanto "turístico" demais, estilo trenzinho de parque demais, se pensarmos que o trem original carregava prisioneiros perigosos transportando lenha e rochas.
Mas o passeio compensa porque leva ao belo Parque Nacional da Terra do Fogo, um conjunto de picos glaciais, bosques costeiros, lagoas, trilhas, muitas aves aquáticas e uma praga, o castor. Introduzidos em Ushuaia nos anos 1940, antes da criação do parque, os animais proliferaram, na falta de predadores naturais.
O bicho é fofo, mas causa um problemão, como derrubar árvores que não brotam novamente. É um desequilíbrio ecológico ainda longe de uma resolução.
Handebol de neve
O Cerro Castor é uma ótima atração esportiva de Ushuaia por base a 195 metros acima do nível do mar e pico acima dos 1.000 metros. Esta variação permite uma boa oferta de pistas para pessoas em diferentes níveis de intimidade com o esqui.
Além disso, a alta latitude de Ushuaia estica o calendário até outubro, quando as outras estações da Argentina já encerraram a temporada. O frio da região permite que a neve dure mais tempo.
Além do esqui, do hóquei no gelo e do futebol, Ushuaia adora handebol de neve, uma invenção local. A cidade, inclusive, sediou o primeiro campeonato pan-americano do novo esporte, em 2015.
Cidade mais austral do mundo? Não
O slogan do "fim do mundo" pegou para Ushuaia, não tem jeito. É um chamariz e tanto, convenhamos. Ainda que a ferrovia, a estação de esqui e outros equipamentos e atrações da cidade sejam, de fato, os mais austrais do mundo, Ushuaia em si não é.
A prefeitura, as agências, o ministério do turismo da Argentina e blogs de viagem podem espalhar o quanto quiserem, mas basta chegar a Ushuaia para entender que isso não é verdade.
A cidade fica na beira do Canal de Beagle, na margem norte do estreito. Do outro lado, na margem sul, um pouco mais ao leste, fica o pequeno município chileno que desbanca Ushuaia no quesito.
Puerto Williams é a verdadeira cidade mais ao sul do planeta, algo que qualquer mapa pode mostrar. Ainda assim, como se já não estivesse claro, uma comissão formada por membros de Argentina e Chile decidiu, em 1998, que Ushuaia não seria considerada o "fim do mundo". O jornal "Clarín" até fez matéria a respeito, na época.
Só que, na prática, Ushuaia continua sendo tratada como tal. Puerto Williams é uma pequena cidade de 3 mil habitantes sem muitos atrativos além do próprio título de município mais austral do mundo.
Ushuaia, por outro lado, tem mais de 50 mil moradores, seu porto é ponto de partida de cruzeiros para a Antártida e a cidade é um dos principais destinos turísticos da Argentina. Pode até não ser o fim do mundo de fato, mas compensa toda e qualquer lonjura.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.