Pães dourados e crocantes contam história de 4 gerações de família italiana
Quem passa diante da Padaria Carillo, no coração da Mooca, pode não se dar conta de que a simpática lojinha de piso xadrez guarda nada menos do que 110 anos de história.
Como tantas outras sagas protagonizadas por imigrantes italianos, que chegaram em massa ao Brasil entre o fim do século 19 e o começo do 20, a aventura dos Carillo é repleta de emoções, imprevistos, episódios de superação e capítulos dramáticos, entremeados por laços de afeto e amizade, como uma verdadeira novela de personagens reais.
Mas um elemento muito especial amarra toda essa história, o que só pode ser sentido por quem passa pessoalmente pela porta da padaria: o cheirinho de pão.
Hoje, passado e presente se mesclam dentro da padaria. A receita de 110 anos é assada em forno a lenha que já completou quatro décadas, mesma idade da masseira onde é batida diariamente.
À frente da produção, no entanto, estão dois jovens Carillo: Gabriel, 36, e Guilherme, 37, bisnetos do primeiro imigrante que atravessou o Atlântico em busca de sorte e prosperidade. Dizer que o pão italiano mudou o destino dessa família não é força de expressão.
A hora da América
Era o ano de 1912 quando Rafaelle Carillo deu início à saga. Morador da comuna de San Giuseppe Vesuviano, na província de Nápoles — região do sul do país, de onde partiu a segunda leva de imigrantes italianos, nos primeiros anos do século 20 —, ele trabalhava como provador de vinhos e deixou a terra natal para "fazer a América".
O termo, bastante usado pelos italianos de então, resumia a disposição de trabalhar duro e aproveitar as oportunidades do novo continente, para fazer um pezinho de meia e, quem sabe, enriquecer. Rafaelle não veio sozinho. Trouxe três irmãos, Francisco, Antonio e Paschoal.
O quarteto chegou pelo porto de Santos, se instalou no Belenzinho, Zona Leste paulistana, e montou uma pequena padaria, especializada na receita caseira que eles conheciam tão bem — mesmo que não fossem padeiros profissionais, sabiam preparar o pão de casca dura e crocante indispensável à mesa dos italianos. Mercado consumidor não faltava.
Segundo dados do Museu da Imigração do Estado de São Paulo, entre 800 mil e 1 milhão de italianos registraram entrada no estado de São Paulo a partir de 1888. Não deu outra — nos anos seguintes, Rafaelle se casou, teve dez filhos e, com o dinheiro ganho na padaria, comprou uma casa para cada um.
Tudo o que sabem sobre essa primeira geração a viver em São Paulo, Gabriel e Guilherme ouviram do avô, também Paschoal, filho caçula de Rafaelle.
"Eles moravam em uma chácara e meu bisavô entregava os pães a cavalo. Praticamente morava no trabalho, dar à família tudo do bom e do melhor era sua maneira de cuidar. Minha bisavó, Maria, tinha cara de brava e cuidava do cofre. Cabia a ela cozinhar para os dez filhos e todos os funcionários da padaria", conta Guilherme.
Herança de esforço
Os pães que Rafaelle assava eram diferentes do pão italiano que o paulistano aprendeu a amar. Já tinham casca dura, dourada e crocante, mas eram redondos e enormes — recebiam o nome de pão do peito, porque era hábito encostá-los no peito para cortar as fatias.
A vocação e o foco, Paschoal herdou do pai. Os netos lembram que mal viam o avô, que fazia questão de trabalhar sozinho na produção, sem um ajudante sequer, e trocava o dia pela noite, rotina que praticamente impedia a convivência familiar — acordava às 22h, chegava à padaria à 0h e passava a madrugada preparando as fornadas, para que estivessem fresquinhas logo cedo pela manhã.
Cuidava pessoalmente das entregas porta a porta. Depois de percorrer o bairro em um furgão, voltava para casa e dormia durante a tarde, para recomeçar tudo de novo à noite.
Ele não tinha paciência para lidar com o público e só levantava a porta da padaria nos fins de semana, das 7h às 13h, para vender pães recheados de torresmo e calabresa", conta o neto.
Paschoal prosperou. Fez questão que os filhos estudassem e não quis formar sucessores — por essa razão, o pai de Guilherme e Gabriel tomou outro rumo profissional e a tradição dos pães pulou uma geração. Mas ele não esperava que o neto mais velho, estudante de turismo, se interessasse pelo negócio familiar.
"Quando uma professora mostrou que o patrimônio histórico também é um atrativo turístico, caiu a ficha. Meu avô tinha 70 anos, saúde para carregar sacos de 50 quilos de farinha, mas a tradição poderia morrer com ele", conta Guilherme.
De repente... padeiro
Não foi fácil para o jovem, então com 18 anos, abrir mão das baladas para acompanhar a dura rotina da padaria, que já tinha deixado o Belenzinho e, desde 1982, ocupava uma loja na Mooca.
O avô, acostumado a trabalhar sozinho, viu a chegada do neto com desconfiança. Julgou que o interesse era fogo de palha e só passava tarefas simples, como varrer o chão. Guilherme não tinha permissão para chegar nem perto da massa dos pães.
"Ele andava com um bolo de dinheiro vivo, dos pagamentos que recebia da entrega em domicílio, e ao final do dia me pagava. Foram cinco anos ganhando a confiança dele aos poucos, aprendendo outras tarefas, até conhecer o processo todo", ele conta.
O primeiro dia de Guilherme como padeiro titular foi emocionante, mas triste ao mesmo tempo — só aconteceu porque o avô foi hospitalizado em função de uma insuficiência pulmonar, fruto de décadas inalando a fumaça do forno a lenha.
Eu fiz as fornadas, entreguei todos os pães e levei o dinheiro das vendas para ele, na cama do hospital. Mostrei que conhecia o processo inteiro, que sabia quem preferia o pão mais moreninho e quem pagava fiado pela caderneta. Só naquele dia meu avô passou a confiar 100% em mim."
Aos pouquinhos, Guilherme foi convencendo o avô a promover pequenas melhorias na padaria. Em 2008, seu irmão mais novo, Gabriel, formado em administração de empresas e egresso de um intercâmbio na Inglaterra, decidiu entrar para a sociedade também.
Dois meses depois, Paschoal faleceu. Desde então, os dois irmãos tentam dosar as modernidades que o mercado exige com a tradição, tão cara à família Carillo.
Sabor de infância... todo dia
A loja, que funciona no mesmo endereço desde 1982, ganhou seção de confeitaria e mercearia, onde são vendidas massas frescas e antepastos de fabricação própria. No salão com 42 lugares, são servidos pizzas e lanches.
Mas a estrela da casa continua sendo o pão fermentado por 24 horas. A versão sem recheio tem o mesmo sabor da infância, quando Guilherme e Gabriel disputavam fatias besuntadas de manteiga no lanche da tarde.
Os recheados despertam outras memórias — de quando os dois, já crescidos, adoravam dar uma passada na padaria do avô, na volta dos programas, para filar um pão recém-assado com miolo cheinho de muçarela derretida. Se enjoa ver tanto pão todo dia? Eles juram que não.
Receita de
pão italiano caseiro
Rendimento: 2 pães de 500 g cada
Ingredientes
- 1 kg de farinha de trigo
- 20 g de sal
- 10 g de fermento biológico fresco
- 650 ml de água
- azeite para untar
Modo de fazer
Misture a farinha com o sal e o fermento e acrescente a água aos poucos. Misture até que os ingredientes estejam bem incorporados e deixe repousar por cerca de 10 minutos.
Coloque a massa em uma bancada polvilhada com farinha de trigo e sove por cerca de 15 minutos. Divida a massa em duas bolas, cubra com um pano de prato limpo e deixe descansar por cerca de 1 hora, ou até que a massa dobre de tamanho.
Polvilhe a bancada de novo e sove novamente as duas bolas de massa, separadamente, por mais 5 minutos. Unte as formas com azeite, modele os pães e asse em forno preaquecido, a 220°C, por cerca de 45 minutos.
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