Além do eisbein: descendentes de imigrante alemão evocam culinária caseira
Jovens geralmente são atraídos por aventuras e não foi diferente com o desenhista e gravurista alemão Werner Volkmer. Ele tinha apenas 18 anos quando deixou a cidade de Leipzig para trabalhar do outro lado do Atlântico, em São Paulo, na redação paulistana do jornal "Deutsche Zeitung".
Era o ano de 1929. A Primeira Guerra Mundial já tinha terminado, o planeta vivia relativamente em paz, mas muitos alemães já haviam trocado o país natal por São Paulo em busca de terras — as primeiras levas de imigrantes, formadas por comerciantes, professores, pastores e médicos, chegaram ao porto de Santos em 1827. Vinham cheios de esperança, estimulados pelas promessas (muitas não cumpridas) do imperador D. Pedro 1°.
As terras em questão não ficavam exatamente em São Paulo, mas em uma região rural afastada do centro, onde foi instalada a primeira colônia estrangeira no país: Santo Amaro, que cinco anos depois se tornaria município.
Nos anos seguintes, outros alemães foram se instalando nas proximidades, onde hoje estão diversos bairros da Zona Sul paulistana. E foi Moema que Werner Volkmer escolheu para viver. Ali casou-se com outra imigrante, Henny Wilhelmina, morou por três décadas e teve uma filha, Irmgard.
A vida em São Paulo era tão boa que outros membros da família decidiram emigrar também. Vieram o irmão de Werner, Robert, e bem depois a mãe dos dois, Luise, que atravessou um campo minado a pé e viajou só com a roupa do corpo para fugir da Segunda Guerra Mundial. Mas a promessa de prosperidade não foi a grande responsável pela permanência dos Volkmer em São Paulo.
Segundo a neta de Werner, a artista plástica Heidi Marie Prüfe Ximenes Diniz, 61 anos, o fator decisivo foi mesmo a comida.
O que fez meu avô ficar no Brasil foi a comida brasileira, as frutas, as cores. Ele tinha muito apreço pelo comer bem e adorou aquela junção de temperos. E amava uma caipirinha", conta.
Casarão: uma "novela" alemã
O ano de 1959 representou outro marco na história dos Volkmer. Foi quando os dois irmãos decidiram comprar terrenos adjacentes na então Rua Rui Barbosa, hoje Rua Demóstenes, no Campo Belo, e construir casas amplas, onde pudessem viver com mais conforto com as famílias, e ainda por cima sendo vizinhos.
Naquele tempo, o bairro era um bucólico recanto de pequenas chácaras, onde famílias de imigrantes alemães e seus descendentes criavam animais e cultivavam belos jardins.
Oriundo de uma família de pedreiros, Helmut Prüfe, marido de Irmgard, se encarregou da obra. "Não tinha planta. Meu pai riscou um desenho e cada etapa era discutida à mesa, em família", lembra Heidi.
A construção foi uma verdadeira novela, que se prolongou por quase duas décadas, com direito a episódios dramáticos dignos dos melhores romances épicos.
"Em função de um processo judicial envolvendo a família, a obra ficou paralisada por anos. Passei minha juventude morando em uma construção, sem portas nem janelas. Quando o processo se encerrou, eu já era adulta. Mês a mês, a gente calculava quantos tijolos conseguiria comprar e subia uma parede de cada vez."
Lembranças à mesa
Tão vivas quanto essas lembranças, são as memórias que Heidi guarda das reuniões do clã ao redor da mesa. Da cozinha comandada por Henny, que depois passou às mãos de Irmgard, saíam travessas de pimentões recheados e charutos de repolho com carne moída, em versão diferente da árabe, sem arroz misturado.
Meus avós se impressionaram com a qualidade dos vegetais daqui. Diziam que, na Alemanha, nunca tinham visto legumes, frutas e verduras tão bonitos. Lembro que sempre tinha muita salada nas refeições", conta Heidi.
Pães pretos rústicos, de massa integral, eram assados em casa quase diariamente. À noite, eles escoltavam sopas, mesmo quando não fazia frio, ou viravam um lanche peculiar que o patriarca gostava de comandar.
"Meu avô colocava vários itens na mesa, ciboulette picada, manteiga, ovos cozidos, tomates, cebola, e ia montando canapés pra gente. Ficava horas fazendo isso, enquanto a gente conversava." No meio da tarde, o café com bolo era sagrado.
Parte desses rituais, Heidi e o filho, Pedro Diniz, estão resgatando no Gansaral, misto de restaurante e centro cultural que funciona, desde 2018, no antigo casarão dos Volkmer. Rodeada por 600 m² de jardins, a construção carregada de histórias resistiu à especulação imobiliária e se mantém no formato original — uma restauração, em 2017, deixou tudo tinindo.
O nome é uma homenagem a Henny, que criava gansos no terreno. Eram seus animais de estimação, mas também ajudavam a guardar a propriedade. "Os filhotes, ela distribuía entre os vizinhos. Esta não era a única casa do Campo Belo a ter gansos no jardim", revela a neta.
Comida do dia a dia
Na cozinha que já foi da avó, ela prepara refeições que mostram uma culinária alemã diferente daquela que os paulistanos mais conhecem. Pratos pesadões como o eisbein, tradicional joelho de porco, até entram no menu, mas eles fazem questão de também jogar luz sobre pratos mais caseiros.
Ninguém come joelho no dia a dia. Essas receitas, os alemães só comem em dias festivos."
Cozidos, diz Heidi, são a base da culinária doméstica alemã — muita carne de panela, sempre com legumes cozidos no molho. Aspargos, cenouras e ervilhas estão entre os preferidos. "Grelhados não fazem muito sucesso entre os alemães. A gente prefere comida com molho", ela explica.
Carne suína, cordeiro e peixes são mais comuns nas refeições rotineiras — pelo preço, a carne bovina só aparece de vez em quando na mesa alemã. O famoso paprika schnitzel, milanesa bem temperado, é preparado com lombo de porco.
Mas, em São Paulo, os herdeiros se dobram ao paladar local e não deixam a carne bovina de fora. Ela aparece no goulash, um dos pratos caldosos mais conhecidos da culinária tradicional alemã, e no omas sauerbraten, prato que Heidi considera uma síntese do paladar dos seus ancestrais, com sua mistura de sabores agridoces.
Uma peça de lagarto, que passa por três preparos (depois de marinado, é frito e, depois, cozido na pressão), é servido com repolho-roxo cozido com maçã e bacon.
Sucesso da vizinhança
Quando idealizaram o Gansaral, Pedro e Heidi planejavam que o lugar funcionasse apenas como café, com cardápio de comidinhas. Assim foi até a pandemia, que jogou todo o planejamento por terra. De portas fechadas, a dupla passou a oferecer refeições com sotaque alemão em sistema de delivery, limitado ao bairro e arredores. Quando veio a autorização para o estabelecimento reabrir, a vizinhança já estava tão acostumada aos pratos de almoço que não abriu mão deles.
A torta de chucrute temperado com kümmel, condimento também conhecido como cominho-armênio, é finalizada com fatias de bacon trançadas. Por encomenda, Heidi prepara apfestrudel (torta de maçã), linzertorte (torta de especiarias, cacau e amêndoas com recheio de compota de morangos) e gelbe-rüben torte (bolo de cenoura com limão, canela, avelãs, amêndoas, geleia de damasco e marzipã).
A programação cultural do Gansaral nem sempre tem sotaque alemão. Músico de formação, Pedro organiza apresentações de MPB e chorinho no jardim, encontros de literatura e mostras de artes visuais.
Mas, volta e meia, o cravo da família entra em cena em saraus de música barroca alemã, trilha sonora perfeita para ouvir todas as histórias saborosas que os descendentes do aventureiro Werner Volkmer têm para contar.
Receita de
omas sauerbraten
Rendimento: 6 porções
Ingredientes
1ª etapa - marinar
450 ml de vinagre de maçã
1 cebola cortada em 4 partes
3 dentes de alho descascados
pimenta jamaica em grãos
1 kg de lagarto bovino
2ª etapa - fritar
óleo de girassol para fritar
sal a gosto
1 cebola picada
1 dente de alho esmagado
1 tomate grande, sem pele e sem sementes, picado
zimbro em grãos a gosto
200 ml do líquido da marinada
800 ml de água
3ª etapa - cozinhar
1 colher (sopa) de amido de milho
Modo de fazer
1ª etapa - marinar
Em recipiente que possa ser hermeticamente fechado, misture o vinagre com os temperos, mergulhe a carne e complete com água, até que fique completamente coberta. Tampe e deixe marinar por, pelo menos, 12 horas na geladeira. No final, retire a carne da marinada e reserve o líquido.
2ª etapa - fritar
Na panela de pressão, aqueça o óleo e frite bem a carne, deixando pegar bastante no fundo, para formar uma crosta que vai enriquecer o molho. Incorpore o sal, a cebola e o alho e refogue por aproximadamente 5 minutos. Adicione o tomate, o zimbro, o líquido da marinada e a água, feche a panela e deixe cozinhar por 40 minutos após iniciar a pressão. Desligue, deixe a panela perder a pressão naturalmente, abra a tampa, verifique sal e temperos e corrija se necessário.
3ª etapa - cozinhar
Dilua o amido de milho em um pouquinho de água, dissolva no molho, misture bem e volte a cozinhar a carne em fogo baixo, com a panela destampada, até o molho engrossar e ficar marrom escuro. Se desejar, coe o molho. Sirva com o repolho-roxo rotkohl.
Receita de
Rotkohl (repolho-roxo cozido com maçã e bacon)
Rendimento: 6 porções
Ingredientes
500 g de repolho-roxo fatiado fino
60 g de bacon em peça, cortado em 4 pedaços
6 cravos
4 maçãs fuji cortadas em cruz, sem os miolos
120 g de açúcar
450 ml de água
5 ml de vinagre de maçã
1 colher (sopa) de amido de milho
Modo de fazer
Em uma panela grande, junte o repolho com o bacon, os cravos, a maçãs, o açúcar e a água e cozinhe por 30 minutos, em fogo baixo, com tampa. Reserve a maçã e descarte o bacon.
Adicione o vinagre ao repolho, junto com o amido de milho, diluído em um pouquinho de água, e mexa até o repolho adquirir tonalidade roxa bem viva, com caldo espesso. Sirva com os pedaços de maçã, como guarnição do omas sauerbraten.
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