Refugiada do Congo relembra fuga e recomeço ao sabor do acolhedor pondu
Nesta semana em que se comemora o Dia do Imigrante, celebrado hoje (25), contamos em Nossa a história de pratos que passaram por gerações de descendentes italianos, alemães e sírios. Encerrando este ciclo do Receita de Família especial, conheça a história da refugiada congolesa Prudence Kalambay Libonza e o prato que lhe traz memórias afetivas da terra natal:
A vida de Prudence, 41 anos, daria um romance. Quem hoje espia seu perfil no LinkedIn, rede social voltada para o mercado de trabalho, lê que ela se apresenta como influenciadora e palestrante self-employed, ou seja, que trabalha por conta própria.
Trata-se de uma carreira de sucesso inesperada, que ela descobriu por acaso — bastou começar a contar, em público, todos os capítulos que a fizeram fugir de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, e a trouxeram até São Paulo na condição de refugiada.
Para entender melhor a carga dramática da vida de Prudence é preciso voltar muitos anos atrás. Sem a presença da mãe, que abandonou a família pouco depois do parto, a menina foi criada desde os dois meses de idade pela tia paterna, uma belga a quem ela se habituou a chamar de mãe.
O pai, comerciante, e o avô, juiz de direito, tinham a política no sangue e eram intensamente engajados nas causas sociais, DNA que Prudence levou adiante. Linda, já trabalhava como modelo aos 16 anos, carreira que posteriormente passou a conciliar com o expediente no escritório de uma repartição pública. Ser atriz era seu sonho.
Em casa, o clima era de harmonia. Das refeições em família, sempre preparadas pela tia — que também se chamava Prudence —, ela lembra com nitidez dos menus, que sempre tinham dia certo para acontecer. Segundas-feiras eram reservadas ao pondu, um dos pratos mais icônicos do Congo, feito a partir das folhas da mandioca.
Há várias formas de cozinhar o pondu, e todas exigem que as folhas sejam ferventadas por longas horas. Ao final, assumem a forma de uma receita prática do dia a dia, mas também podem dar origem a um preparo festivo para a refeição do domingo ou a celebração de um casamento.
Não há muita regra, como o leitor verá ao final do texto. O pondu pode ir à mesa acompanhando arroz, peixe grelhado, sardinha ou carne, bacalhau, banana frita e até pão. Tamanha importância não se deve só ao sabor do prato — especialmente rica em proteína vegetal, minerais e vitaminas, a folha da mandioca é considerada uma bomba de nutrientes.
Não falta na mesa da gente. É um alimento medicinal que ajuda a combater a anemia", diz Prudence, com o forte sotaque afrancesado que virou sua marca registrada.
Na casa onde foi criada, as folhas eram socadas no pilão e sempre levavam muitos temperos, além de uma quantidade generosa de azeite de dendê.
E é dessa forma que ela ainda prepara o prato para os cinco filhos que vivem com ela em São Paulo — Exaucée Cathy (21 anos), Rozette Joella (14), Joe Junior (11), Joana Deolinda (9) e Joel Julio (7) -, além da neta, Eloah Prudence, que está prestes a completar 3 anos.
Perseguição na terra-natal
A mais velha acompanhou a mãe na difícil fuga do Congo. A sorte de Prudence começou a mudar quando ela engravidou aos 21 anos, pouco depois de ser eleita 1ª Dama Miss Elegance, em um importante concurso de beleza de seu país. Sem respaldo familiar, assumiu a condição de mãe solo, seguiu adiante e, em 2004, venceu outro concurso de beleza: o de Miss Bibile, que significa mulher bonita.
Paralelamente, seguia trabalhando no escritório do general Faustin Munene, opositor ao regime do ditador Joseph Kabila, e ainda fundou um grupo de apoio a mães solo em sua cidade — atuações que a colocaram na posição de perseguida política.
Mães solo que se envolvem em política não são bem vistas no Congo", ela resume.
Seu primeiro destino como refugiada foi outro país africano, Angola. Levando pela mão a filha de 4 anos e grávida da segunda, Prudence deixou Kinshasa e fez parte do trajeto a pé. Caminhou por dias até chegar ao país vizinho, onde viveu de 2005 a 2008. Lá, diante da TV, teve a ideia de se mudar para o Brasil.
"Me apaixonei pelo país assistindo às novelas, queria conhecer o Lázaro [o ator Lázaro Ramos]. Pena que, até hoje, não consegui."
No Rio de Janeiro, acolhida pela organização Cáritas Brasileira, vinculada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), instalou-se no bairro de Brás de Pina, na Zona Norte, e decepcionou-se com a paisagem tão diferente dos cartões postais e mansões com vista para o mar que via pela telinha.
Penou para aprender a falar português no susto e se deparou, pela primeira vez, com o racismo. "No meu país, todo mundo tem o mesmo tom de pele. Você pode até sofrer preconceito por outras razões, mas nunca pela cor."
Nova missão no Brasil
De novo influenciada pela TV, Prudence teve a ideia de se transferir para São Paulo, levando a família que não parava de crescer. E foi na maior metrópole do Brasil que ela descobriu uma nova vocação.
"Fiz uma oração, pedi ajuda a Deus e ele me respondeu: te dei inteligência e sabedoria, usa lá. Com ajuda da Cáritas São Paulo, comecei a trabalhar pelo empoderamento de mulheres refugiadas, virei palestrante, dei entrevistas em programas importantes e passei a contar minha história, para mostrar a realidade difícil que nós vivemos.
Entrei nessa guerra sem querer, mas entendi que fui chamada."
A vida, aos poucos, vai entrando nos eixos. Prudence até chegou perto do sonho de ser atriz: além de aparecer na abertura da novela "Órfãos da Terra", exibida pela TV Globo em 2019, e inspirar a história da personagem Marie, a congolesa participou do clipe da música "Let Me Be The One", gravado em 2020 pela brasileira Iza e pelo rapper norte-americano Maejor.
Seus coloridos turbantes africanos tornam suas aparições públicas ainda mais impactantes. Mas falta realizar um projeto — conquistar uma casa espaçosa, onde a prole numerosa possa viver com mais conforto.
Prato de conforto
Por enquanto, Prudence, filhos e neta (outra neta está a caminho) dividem uma casa de um único dormitório na Zona Leste paulistana. A falta de espaço, contudo, não a impede de recriar, ao redor da mesa, o ambiente familiar acolhedor que ela conheceu na infância, sobretudo nos dias especiais, quando o pondu é o prato do dia.
Conseguir folhas de mandioca, em plena capital paulista, não é tarefa simples — é preciso encomendar a verdura na feira e pagar caro por elas.
Receita certinha, Prudence vai logo avisando que não tem. Como acontece a boa parte das cozinheiras que pilotam o fogão no ambiente familiar, os ingredientes vão sendo dosados de olho. O processo começa no liquidificador, já que ela não tem pilão.
"Lavo as folhas, passo pela água quente, espremo e bato, junto com os temperos e outros legumes", ensina.
Entram cebola, alho, pepino, cebolinha, berinjela, pimentão e o que mais houver à mão, além de um cubinho de caldo industrializado. No panelão com água, a mistura borbulha durante horas, até o momento de acrescentar a sardinha em lata, conservada em molho de tomate. Por fim, o dendê colore a mistura com seu tom laranja vivo.
A filharada adora a refeição congolesa. "É como perguntar a uma criança brasileira se gosta de feijoada", Prudence compara.
Ela continua a sonhar alto. Quer que todos morem com mais dignidade e planeja devolver à sociedade toda a ajuda que tem recebido. Mas ao ver filhos e neta sentados comendo, revivendo o laço de afeto que serviu de base para sua construção como mulher, ela suspira.
Queria que minha mãe visse quem eu me tornei hoje."
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