Drinque com vodca e caldo de carne, bullshot está sumido, mas tem seus fãs
Dele se diz ser "primo" do Bloody Mary. Popular em "cocktail bars" do Primeiro Mundo até meados do século passado, desapareceu (quase) sem deixar traços. Hoje, raramente é encontrado. No Brasil, onde ao longo do tempo também experimentou lampejos de sucesso, é preciso literalmente garimpar por ele, e nem seu bartender de confiança conseguirá ajudar na missão.
Pena: em que pese fazer todo o sentido de tempos em tempos a "fila andar" e drinques do momento partirem e surgirem ("presente", diria o Negroni), que os céus em sua infinita bondade perdoem os fãs de boa coquetelaria que nunca surfaram a sedutora complexidade de um Bullshot.
Bull.. o que?
Bem, vejamos: vodca, suco de limão, molho inglês (Worcestershire, o original), tabasco, sal, pimenta do reino em pó. E o pulo-do-gato: caldo de carne bovina.
Isso mesmo: a assinatura, a alma, que faz o Bullshot tão peculiar e irresistivelmente complexo, é o consomê obtido do cozimento de carne, razão também pela qual sua manufatura seja pra lá de trabalhosa — desencorajadora, até, a ponto de ser evitada mesmo por profissionais de larga milhagem por trás do balcão. Quase uma ourivesaria, que bartenders mais espertinhos hereticamente já tentaram sabotar usando... caldo Maggi!
Não faltam tietes famosos: em Hollywood, nos áureos tempos do drinque, Marlon Brando, Richard Chamberlain, Joan Crawford, Malcolm McDowell — desse, inclusive, dizia-se dar entrevistas à imprensa sobre o longa "Laranja Mecânica" não raro regadas a Bullshots.
No Brasil atual, a atriz Cissa Guimarães, o cartunista Jaguar, o compositor Edu Lobo, o ator Du Moscovis, os chefs Thomas e Claude Troisgros, o publicitário Washington Olivetto — a lista é extensa.
Origem disputada
Duas correntes distintas disputam a primazia de sua criação. A primeira remete ao passado remoto, um tempo em que marinheiros ingleses recebiam abastecimento diário de rum, quando a bordo. E também de caldo de carne que, além de alimentar, combatia doenças.
Em algum momento, o caldo teria sido adicionado ao rum, que mais tarde foi trocado pela vodca e caiu nas graças de bebedores do Reino Unido e do mundo. Ou seja, o drinque, de tom marrom-amarelado único no universo coqueteleiro, teria sido inventado literalmente no mar.
Já o Caucus Club, no coração de Detroit, EUA, clama para si a invenção. Fundado em 1952, era frequentado por ricos e proeminentes cidadãos da "Motor City", e foi o palco de estreia de uma então desconhecida cantora de nome Barbra Streisand — hoje, é restaurante fine dining e sequer tem o Bullshot na carta. Mas teria sido lá que um dos donos notou que as vendas do sabor carne das famosas sopas enlatadas Campbell's andavam em baixa. E teve o insight de juntá-las à vodca e especiarias diversas.
Nos primeiros testes, a clientela adorou. Apesar do apelido freak drink ("drinque esquisito"), em pouco tempo o Bullshot virou um dos coquetéis mais populares dos anos 50 e 60. Coincidência ou não, em conexão com uma estranha moda culinária de verão, na mesma época, nos EUA: soup on the rocks, sopa (de carne) com gelo.
Quanto ao nome, Jumping Bull, Matador, Bulldozer, foram outras tentativas que não emplacaram. Ficou Bullshot mesmo, um trocadilho maroto (do quase palavrão bullshit) que os donos do Caucus Club, mesmo advertidos por amigos, teriam decidido manter.
Ilhas de resistência
"Aqui no Rodeio ele nunca saiu da carta", assegura Walfrido Souza de Aquino, chefe de bar do lendário restaurante dos Jardins, em São Paulo. "E olha que trabalho aqui há 40 anos".
O bartender acredita que, no Brasil, o Bullshot tenha sido introdução do próprio Rodeio. "Quando entrei, já serviam", recorda.
Na receita da casa, a carne (de primeira) é cozida sem temperos e com pouca água.
E não usamos o caldo, usamos o sumo, espremendo a carne", explica.
Quando essa poção migra da cozinha ao bar, recebe gelo, o que "levanta" a gordura, tirada a seguir com uma colher. "Fica só o líquido, que temperamos na hora, na frente do cliente, ao montar o drinque". Em copo Collins, claro.
Outro templo eterno do Bullshot é o Guimas, na Gávea, Rio de Janeiro, onde desde a inauguração (em 1981), o elixir nunca saiu de cartaz.
"Nosso Bullshot é forte e bem encorpado. Alimenta e desalinha, se tomado em excesso", brinca o barman José Francisco Vasconcelos, o Zequinha, 38 anos de casa.
No Guimas, o processo de obtenção do caldo de carne leva temperos (alho e cebola), para o cozimento. E tem um reforço extra: "Adicionamos um ótimo extrato de carne canadense. Por isso fica encorpado", garante Zequinha.
Apesar de não ser mais tão "in" como já foi um dia, o drinque, ele conta, ainda tem fãs fiéis.
Repetimos o processo com a carne diariamente, o Bullshot sai todo dia. Muita gente ainda vem tomar".
Reza a lenda hollywoodiana que, "confrontada" pela primeira vez com um Bullshot, a estrelíssima Marilyn Monroe, chegada que só num bom copo, refugou. "Que coisa horrível de se fazer com a pobre vodca", teria reclamado. Nesse aspecto, a diva não poderia estar mais enganada.
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