Visitamos a loja que vende bagagens e itens perdidos em aeroportos dos EUA
Aquela era a primeira vez em que eu usava luvas cirúrgicas para abrir uma mala. Também era a primeira vez em que uma roda com cerca de trinta pessoas se formava à minha volta com curiosos, tanto quanto eu, para enfim descobrir o que haveria dentro de uma tal mala preta média de rodinhas.
Ao meu lado, uma funcionária estava a postos com um microfone pronta para narrar os itens que eu retiraria. É, não era mesmo uma situação comum. Eu estava abrindo uma das centenas de malas que chegam todos os dias na loja Unclaimed Baggage, em Scottsboro, no Alabama.
A loja é realmente das mais diferentes. É a única no mundo que vende os artigos de malas sem donos deixadas em todos os aeroportos dos Estados Unidos. E tudo com desconto, claro.
A 32 quilômetros do Tennessee, a cidadezinha de Scottsboro tem só 15.000 habitantes, mas todo ano chegam na loja cerca de 1 milhão de visitantes — quase o dobro do que recebe Jericoacoara com seus 20.000 habitantes, por exemplo.
A Unclaimed Baggage é uma das grandes "atrações turísticas" do Alabama e vende mesmo de tudo. Ocupa todo um quarteirão da cidade e é organizada como uma imensa loja de departamentos: há a seção de roupas femininas, roupas masculinas, joias, bolsas, eletrônicos, artigos para casa, livros, malas e por aí vai.
Como anuncia a loja, se algo pode ser levado em uma mala ou deixado em um avião poderá estar na Unclaimed Baggage. É tanta coisa à venda — todo dia entram para o acervo da loja 7.000 objetos — que os sortudos da vizinhança estão sempre por lá para fuçar as novidades.
O que é considerado uma "bagagem perdida"
A Unclaimed Baggage existe desde 1970 e tem parceria com todas as companhias aéreas norte-americanas que operam voos domésticos nos Estados Unidos, além de empresas de transporte e carga.
Pode ser difícil entender como tanta gente esquece uma mala no aeroporto. Ou como a companhia aérea não encontra o passageiro. Mas em 99,5% dos casos, os passageiros apreensivos nas esteiras dos aeroportos dos Estados Unidos saem contentes e sorridentes com as suas malas.
As perdas podem acontecer por etiqueta danificada, falta de identificação de contato ou mesmo por gente que deixa propositadamente a mala no aeroporto (pode ser por atraso para o compromisso na chegada, para não deixar rastros de uma viagem feita escondida?.pois é, motivo tem).
As bagagens sem dono só são consideradas órfãs caso nenhum passageiro tenha aparecido durante uma busca de três meses pela companhia aérea. Situação que acontece em apenas 0,03% de todas as 4 bilhões de malas despachadas por ano no país.
Além das bagagens, a loja recebe ainda itens esquecidos nos bolsos das poltronas (por isso tantos livros à venda), nas cadeiras dos aeroportos ou ainda em trens, táxis, ônibus e hotéis. Esses itens correspondem a 70% dos artigos.
Os outros 30% vêm de cargas perdidas, também sem dono, e é por isso que você pode topar durante a andança na loja com dez sapatos iguais ou cinco edições de um mesmo livro.
Tudo limpo e testado
O esquema de seleção e limpeza dos artigos é digno de processo industrial — tudo para que você receba eletrônicos zerados ou peças limpinhas. Assim que o carregamento chega à Unclaimed Baggage, a equipe fica responsável por selecionar os artigos. Todos devem seguir a regra: um terço vai para venda, um terço para doação e outro terço para reciclagem.
Eletrônicos são testados e todos os dados pessoais, apagados. Roupas são encaminhadas para uma lavanderia própria, que inclusive é a maior de todo o estado: cerca de 50.000 artigos por mês entram naqueles tambores. Já as joias, bolsas de luxo e pinturas são enviadas para certificação e autenticação.
Artigos falsos não ficam à venda e são destruídos para que não circulem mais por este mundo. E, como regra, para cada item vendido, um é doado: óculos, por exemplo, vão para pessoas necessitadas, e cadeiras de rodas são enviadas para prisões, onde são reparadas e depois distribuídas a crianças e adultos de instituições.
Descontos de até 80%
A Unclaimed Baggage não é lugar para uma passada rápida. Com tanta coisa junta e misturada, é lugar para algumas horas e para ir com paciência para fuçar. Os descontos chegam a 80% do valor de um produto novo, enquanto as joias são vendidas pela metade do preço.
Bolsas Coach e Marc Jacobs estavam à venda por cerca de US$ 60 (cerca de R$ 323) — as sem assinatura de marcas e estilistas podem custar a bagatela de US$ 8 (cerca de R$ 43).
Já a área de perfumes faz tanto sucesso que uma placa anuncia "apenas três perfumes por visitante por dia", afinal que mal tem comprar um perfume com pouco uso ou até mesmo na caixa? Kenzo, Calvin Klein, Dolce & Gabbana, Mont Blanc e outras marcas desejadas estavam à venda com preços entre US$ 25 (cerca de R$ 134) e US$ 40 (cerca de R$ 215).
Já na área de eletrônicos fica clara a quantidade de gente que perde seus iPhones — e também que não se interessa em encontrar. O iPhone 12 Pro Max desbloqueado, por exemplo, pode ser comprado a US$ 746 (cerca de R$ 4021).
Ternos, casacos de inverno, camisas, gravatas, shorts? tudo o que você quiser encontrar, tem. Mas são os óculos, as garrafas de água e os fones de ouvido os produtos mais esquecidos pelos passageiros nos aviões — consequentemente, a maior variedade que você vai encontrar na loja.
E, como todo mundo faz umas comprinhas quando viaja, 10% dos artigos da loja têm inclusive etiqueta.
Se você quer fugir das compras tradicionais, tudo bem. Tem vestido de noiva, produtos pet, brinquedos, instrumentos musicais?.
Já se a ideia é aproveitar o desconto para enfim ter aquele colar tão desejado, é só ir para a área das joias. O produto mais caro da loja está por lá: é um colar de diamantes vendido a US$ 31.000 (cerca de R$ 167 mil). E tem quem compre, afinal, já teve quem levou um Rolex por US$ 32.000 (cerca de R$ 172 mil e a venda mais cara da Unclaimed Baggage até então).
Abertura da mala, o grande momento (ou quase isso)
Todo dia, ao meio-dia, um cliente pode ser escolhido para fazer ao vivo a abertura de uma das malas que chegam à Unclaimed Baggage. Está aí o motivo das luvas: nunca se sabe o que pode aparecer dentro das malas.
Toalhas úmidas e roupas sujas há três meses fechadas nas malas são o de menos. Uma pele de urso fresca embalada em sal, uma máscara funerária egípcia guardada com diversos outros itens egípcios de 1.500 a.C., um jornal francês de 1934, uma cascavel viva ou mesmo um sapo embalado a vácuo foram só alguns dos artigos nada comuns já encontrados pela equipe.
O exotismo do artigo dita a regra se ele continuará na loja: a máscara egípcia, por exemplo, foi enviada para leilão feito pela famosa empresa Christie's enquanto uma rara câmera de uma nave espacial foi enviada para a NASA.
Tem lojas assim no Brasil?
A Receita Federal organiza leilões regulares de mercadorias apreendidas nos aeroportos internacionais: há eletrônicos, joias, roupas, celulares, etc. Se com os itens apreendidos vale o "quem dá mais", as bagagens sem dono seguem um bom rumo no Brasil. Cada companhia aérea tem o seu procedimento, mas eles são bastante semelhantes.
Na GOL, por exemplo, as malas são enviadas à central de bagagem da empresa por no mínimo 90 dias. Se o cliente não retirar seus pertences ou não for localizado, os itens perecíveis são descartados e o restante do conteúdo é doado a instituições de caridade.
Na LATAM, as bagagens extraviadas cujos donos não foram encontrados também são direcionadas à central de bagagem da companhia, onde é efetuada uma busca secundária. Caso não seja unida a mala ao passageiro, o volume é armazenado por um período pré-determinado e, após o prazo, as bagagens são doadas para entidades sociais parceiras da LATAM.
Seja no formato brasileiro ou no norte-americano, os produtos ganham novos donos.
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