"Deliciosidade" à moda japonesa: o que explica o sucesso da caríssima wagyu
Wagyu é sinônimo de luxo no universo das carnes. O preço alto arregala os olhos tanto de quem pode pagar por uma peça, como a cantora Ludmilla que viralizou ao mostrar a compra nos stories, quanto daqueles que não tem o cacife. Desperta curiosidade: afinal, o que teria de tão especial para custar mais de R$ 1.000 o quilo?
O especialista japonês Kenichiro Yamasaki, que está ao Brasil enviado pela organização de comércio exterior Jetro, esclarece a Nossa como o boi se tornou o mais desejado do planeta, do apelo gastronômico à paradoxal história entre a origem nipônica e a pequena participação do Japão no atual mercado.
Embora seja usualmente tratado como um único gado, o wagyu agrupa quatro raças, sendo a negra a mais conhecida. Todas são originárias do Japão. Dentro de cada uma, estão os pedigrees, que englobam uma série de exigências, entre elas a origem. O chamado kobe beef, por exemplo, é um tipo de wagyu criado apenas na região de Kobe, ao oeste de Osaka.
"Qualquer cruzamento é chamado de 'cross breed' e não é reconhecido como wagyu. Todo wagyu japonês vem com número de rastreabilidade junto com o certificado de nascimento e a sua árvore genealógica".
Tanto cuidado em torno da genética é para garantir que se perpetue o principal atributo da carne: o marmoreio. Em outras palavras, a capacidade de produzir uma quantidade de gordura entre as fibras de carne suficiente para mudar o sabor, o aroma e a textura — para melhor.
Quanto maior o grau de marmoreio, mais elevada é a qualidade do produto".
Manejo especial
Da água à cerveja
Yamasaki considera o respeito o diferencial da pecuária do Japão. Como a pequena extensão territorial do país não permite o pastoreio livre, os animais são criados em confinamento.
Para compensar a ineficiência produtiva do modelo, houve o desenvolvimento do trato individual do boi visando evitar o estresse e, por consequência, o enrijecimento da carne.
"Cada um tem o seu próprio espaço e há um diagnóstico da personalidade, de modo a aproximar os que convivem melhor".
Música, passeio e massagem fazem parte do dia a dia dos animais, que são sempre 'batizados' e chamados pelo nome. "Conversar com as vacas como se fossem membros da família irá refletir na qualidade de vida dela".
A alimentação, balanceada e rica em amido, incentiva o acúmulo de gordura, mas o segredo está na água.
"O gado bebe 120 litros por dia. Nesse sentido, o Japão, como um arquipélago vulcânico com excelentes veios de água em várias regiões, é o ambiente ideal para a criação de carne bovina japonesa".
No verão, os bois podem receber cervejinha. Não para que fiquem bêbados, claro, mas para relaxar o organismo e abrir o apetite inibido pelo calor.
Quando a data do abate é decidida, o animal de dois a três anos de idade ganha um cuidador específico, que, de acordo com Yamasaki, expressa palavras de gratidão e acompanha o animal todos os dias em tempo integral.
Na gastronomia
Umami em ação
No Japão, o boi é abatido após 720 ou 900 dias, quando atinge o seu ápice de ácido oleico, componente que pode ser associado ao quinto gosto, o umami. A tradução literal é "deliciosidade", mas na prática significa a satisfatória sensação de preenchimento e peso na língua.
Essa característica está presente especialmente na gordura, que derrete na boca em temperatura ambiente e harmoniza com o arroz em um sushi de carne, por exemplo.
O consumo do ingrediente cru é possível pelo controle da classificação criada pela Japan Meat Gradind Association em 1978. A avaliação vai de "A" a "C" para qualidade e de 1 a 5 para o grau de marmoreio. A máxima classificação é A5.
O wagyu também pode ser preparado de formas mais comuns, direto na grelha ou na composição de um hambúrguer. "A diluição do marmoreio com o suco da carne certamente oferece uma nova experiência gastronômica para o sanduíche", defende Yamasaki.
Origem japonesa
Lucro internacional
A tradução de "wa" é Japão e de "gyu", bovino. A expressão "wagyu japonês", portanto, é redundante de propósito. Trata-se de uma tentativa de reafirmação já que outros países foram mais rápidos na valorização da pedida. Os motivos são culturais.
Da introdução do Budismo, no século 6, à era Meiji, que começou em 1868, comer animais (com exceção dos peixes) era um tabu na sociedade nipônica. O consumo de mamíferos como os bois, considerados úteis para outras atividades, chegou a ser proibido.
Com o fim do Período Edo, Meiji introduziu políticas públicas que convergiam com hábitos ocidentais, como a alimentação carnívora. A tentativa de cruzar raças nativas com estrangeiras, no entanto, não foi para frente.
Só após o fim da Segunda Guerra (1945), quando o país sofria com a escassez e a inflação, foram descobertas "quatro vacas milagrosas", entre elas o gado Tajima que deu origem à linhagem pura do wagyu.
Em 1976, espermas e embriões do boi viajaram ao Colorado, nos Estados Unidos, para fins de pesquisa.
De lá, foram distribuídos para vários países e utilizados para cruzamentos. Hoje, existe mais 'wagyu' estrangeiro do que genuinamente japonês".
A Austrália, responsável pela metade da exportação mundial da carne, foi a primeira nação a registrar a patente do nome, seguida pelos Estados Unidos, que, junto da União Europeia, representam outros 45% do mercado. "O Japão, por sua vez, lançou a marca 'wagyu japonês' para se contrapor".
Apesar do esforço para reivindicar o pedigree aos olhos do grande público, a realidade é que pecuaristas de lugares como o Reino Unido, a Escócia e a China conseguiram se organizara em associações e, por meio de um trabalho de divulgação, consolidaram o ingrediente nacional como melhor ou tão bom quanto o japonês.
No Brasil, o wagyu foi introduzido em 1995 pela empresa Yakult e, desde então, o rebanho está ganhando corpo. Segundo a Associação Brasileira dos Criadores de Bovinos das Raças Wagyu, de 2020 para 2021, o crescimento foi de 10 % — o que representa um total de 10.000 animais dos 65 criadores membros.
"Por aqui, há um aumento de consumo evidente em açougues e frigoríficos, principalmente de cortes nobres, como ancho", declara Ligia Karasawa, churrasqueira que estuda o tema.
Como resultado, a fatia da exportação que sobra hoje para o Japão é de 5% (o número é assegurado por compradores do Camboja, de Hong Kong e de Taiwan). A maioria dos produtores, porém, prefere focar no mercado interno — que aproveita o animal por inteiro em vez de focar somente no contrafilé — e limitar a produção, cuja tendência é de queda.
Para os brasileiros, tudo isso significa que o wagyu-de-verdade-verdadeiro continuará a ser um insumo raro mesmo na mesa dos que desembolsam até R$ 1500 pelo quilo.
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