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Admirável chocolate novo: como provar o universo dos produtos artesanais

Chocolates de Luisa Abram, que só usa amêndoas de cacau selvagem da Floresta Amazônica - Divulgação
Chocolates de Luisa Abram, que só usa amêndoas de cacau selvagem da Floresta Amazônica
Imagem: Divulgação

Flávia G Pinho

Colaboração para Nossa

21/07/2022 04h00

Reparou como o mercado de chocolates se diversificou nos últimos 10 anos? Surgiram dezenas de marcas e termos novos que ninguém conhecia — como bean to bar e tree to bar — e as embalagens passaram a estampar percentuais de cacau.

A mais recente novidade é o chocolate varietal, que indica o tipo de cacau usado na receita e sua origem. Pode parecer uma gourmetização exagerada à primeira vista, mas de fato o universo do chocolate, no Brasil, se transformou radicalmente — e para muito melhor.

Para explicar esse movimento tintim por tintim, é preciso voltar no tempo.

Tudo começa com o cacau, um fruto típico da região amazônica que foi plantado em grande quantidade no sul da Bahia. Deu tão certo que, no início do século 20, o Brasil já era o maior produtor mundial — são desse período os ricos e poderosos coronéis de Ilhéus, aqueles que povoavam os romances de Jorge Amado e chegaram às novelas de TV.

Mais interessados em acumular riquezas, eles não tinham lá muita preocupação com a qualidade e só focavam nas exportações — e assim foi durante décadas, até que um fungo de nome complicado, o Moniliophtera perniciosa, acabou com a festa nos anos 1990.

Cacau in natura - Caio Ferrari/Folhapress - Caio Ferrari/Folhapress
Cacau in natura
Imagem: Caio Ferrari/Folhapress

Apelidada de "vassoura de bruxa", a praga se alastrou pelas plantações, dizimou lavouras e provocou a falência dos fazendeiros.

Coincide com essa fase de ouro do cacau a ascensão da indústria do chocolate no Brasil. Mas, de forma paradoxal, o cacau não era a estrela — o mercado foi inundado com produtos bem doces, nos quais o açúcar e outros ingredientes, muitos artificiais, entravam (e ainda entram) em maior quantidade. E tudo dentro da lei.

Fazenda de cacau em Ilhéus, na Bahia - Márcio Filho - Márcio Filho
Fazenda de cacau em Ilhéus, na Bahia
Imagem: Márcio Filho

Até 1978, era obrigatório que as fórmulas contivessem ao menos 32% de cacau, mas isso mudou em 2005, quando a Anvisa reduziu a exigência — hoje, basta conter 25% de cacau para que um produto seja enquadrado como chocolate.

O "novo chocolate"

Um novo capítulo começou a ser escrito no comecinho dos anos 2000, quando herdeiros daqueles ricos fazendeiros de antigamente começaram a procurar um jeito de salvar suas propriedades falidas. A solução se apresentou com o nome "cacau fino" — frutos cultivados, colhidos e beneficiados com muito mais cuidado, que geravam amêndoas de alta qualidade, bastante valorizadas no mercado internacional.

Colheita e preparo do cacau, em Ilhéus - Raul Spinassé/Folhapress - Raul Spinassé/Folhapress
Colheita e preparo do cacau, em Ilhéus
Imagem: Raul Spinassé/Folhapress

Um dos pioneiros foi João Tavares, dono da fazenda Leolinda, entre os municípios baianos de Ilhéus e Uruçuca. Em 2010, ele se armou de coragem para competir com suas amêndoas no Salão do Chocolate, em Paris. Sempre que se apresentava como brasileiro, ouvia comentários debochados — mas vingou-se, voltando da França com um dos prêmios Cocoa of Excellence.

De lá para cá, muitos cacauicultores baianos seguiram pelo mesmo caminho e a cultura se alastrou por outros estados — além do Pará, atual campeão na produção nacional, Espírito Santo, Minas Gerais e Rondônia já têm suas lavouras, parte delas dedicadas ao cultivo de cacau fino.

Da amêndoa à àrvore

Chocolate da Mission - Divulgação - Divulgação
Chocolate da Mission
Imagem: Divulgação

A disponibilidade de amêndoas tão boas fez com que um outro segmento despontasse por aqui — o de chocolateiros artesanais. E eles não se contentam em comprar amêndoas para transformá-las em chocolate.

Fazem questão de visitar as plantações, acompanhar o processo de colheita, dar palpites nas etapas de fermentação e torra. Daí vem o termo bean to bar (da amêndoa à barra, em tradução literal).

Representados pela Associação Bean to Bar Brasil, eles já chegam às centenas - embora levantamento recente dê conta de que são 118 no país, a estimativa é que cheguem a 350.

Nesse bolo tem gente miúda como a norte-americana Arcelia Gallardo, que produz as barras premiadas da Mission Chocolate em uma casa na Zona Sul de São Paulo, e marcas poderosas como a Dengo, que mantém uma fábrica na capital paulista, 25 lojas no país, mas segue escolhendo a dedo as amêndoas que adquire de produtores baianos.

Colheita de cacau na fazenda da marca Baianí - Divulgação - Divulgação
Colheita de cacau na fazenda da marca Baianí
Imagem: Divulgação

Parte dos chocolateiros adota uma variante do termo, o tree to bar (da árvore à barra), que classifica os profissionais que são também cacauicultores. É o caso de Juliana Aquino, dona da marca Baianí, que herdou uma fazenda em Una, sul da Bahia, e lançou a marca em 2018.

As embalagens dos chocolates artesanais ajudam a diferenciá-los dos produtos industrializados. Para começar, o teor de cacau é sempre alto — mesmo as barrinhas ao leite costumam chegar fácil aos 40% de cacau — e esse teor é sempre claramente informado.

Muitos produtores ainda fazem questão de contar de onde vem o cacau, já que o terroir influencia bastante no resultado, como explica a degustadora Zélia Frangioni.

Embora haja exceções, chocolates produzidos com cacau da Amazônia costumam ter notas mais florais, e os baianos são frutados e amadeirados, por exemplo."

O consumidor de chocolate artesanal é antenado e, além de exigir qualidade, quer saber como ele foi fabricado — não são raras as denúncias de exploração de mão de obra infantil nas lavouras de cacau mundo afora.

Produção de Luisa Abram - Divulgação - Divulgação
Produção de Luisa Abram
Imagem: Divulgação

Por isso, muitos profissionais fazem questão de mostrar que são atentos a temas como sustentabilidade e justiça social — a chocolateira Luisa Abram, por exemplo, só usa amêndoas de cacau selvagem da Floresta Amazônica, oriundas de frutos coletados por comunidades ribeirinhas.

A essa altura, você já deve estar se perguntando: mas onde entra o chocolate belga nessa história? A fama é merecida e vem da marca belga Callebaut, que não vende produtos ao consumidor final — só matéria-prima (industrializada) para chocolateiros e confeiteiros. E os chocolates Callebaut, para quem não sabe, usam amêndoas de vários países produtores, inclusive do Brasil.

Como saborear os chocolates-desejo

Chocolates de Luisa Abram - Divulgação - Divulgação
Chocolates de Luisa Abram
Imagem: Divulgação

Substituir o hábito de comer chocolate da grande indústria pelos bean to bar nem sempre é fácil. Trata-se de um processo, pelo qual já passaram os consumidores de cafés especiais, de cervejas artesanais e de vinhos. "É uma mudança que pode levar tempo e depende de educar o paladar", avisa Zélia.

Para não errar na hora da compra, ela sugere tomar alguns cuidados. Comece analisando o rótulo.

"Quem faz chocolate com cacau bom não precisa adicionar nenhum tipo de saborizante ou aromatizante, nem baunilha", diz a degustadora.

Gordura, só se for manteiga de cacau. E o teor de cacau deve estar claramente informado na embalagem. "Um dos princípios fundamentais do setor é a transparência", ela diz.

Como o leque de opções é vasto, convém levar em conta o próprio paladar na hora da escolha.

Quem gosta de chocolate industrializado amargo já pode começar por um bean to bar de alto teor de cacau, que vai ser bem mais intenso, mas não necessariamente amargo. Agora, se a pessoa está habituada aos chocolates ao leite, melhor começar pelo bean to bar ao leite também", ela recomenda.

Mas prepare-se: pode ser um delicioso caminho sem volta.