Vinho motivou a Revolução Francesa - e não foi por embriaguez de camponeses
"Finalmente vamos poder beber vinho a três sóis, pois por muito tempo pagamos 12."
Na manhã de 14 de julho de 1789, alguém achou que esse era um motivo importante o suficiente para ser celebrado e registrado em um dos muros que cercavam Paris.
Nos três dias anteriores, camponeses raivosos estavam atacando essas muralhas. Destruíram 40 dos 54 portões que levavam à capital do reino. Os postos de coleta de impostos foram o primeiro foco de protestos e destruição.
Horas depois, a turba tomou a prisão que simbolizava a opressão da monarquia. A Queda da Bastilha acabou marcando o início da Revolução Francesa e, consequentemente, de acordo com a historiografia tradicional do Ocidente, o início da Idade Contemporânea. Mas a insurreição já estava rolando, e os muros pichados e vandalizados revelam uma das grandes motivações da revolta.
Muitos dos camponeses estavam bêbados, mas não é por isso que o vinho teve papel central da Revolução. Não é só por isso.
Ressaca de impostos
As altas taxas que sustentavam o rei absolutista Luís 16, toda a nobreza e o clero foram um dos motivos centrais que levaram a burguesia, com apoio popular, a derrubar o sistema. O aumento do preço do pão catalisou a revolta — mas o povo não queria só comida.
"Vinho era um elemento vital no dia a dia, e os impostos cobrados sobre bebidas alcoólicas estavam entre os principais do Antigo Regime", explica Noelle Plack, pesquisadora da história social do álcool, na publicação "French Historical Studies", da Universidade Duke (EUA).
Mais receitas vinham das taxas cobradas sobre bebidas que entravam em Paris do que sobre todas as outras mercadorias combinadas. O imposto era muito alto, e o preço de um barril de vinho triplicava quando passava pelos portões da cidade. As taxas e as barreiras alfandegárias de Paris se tornaram o foco da revolta em julho de 1789."
A Revolução pode ter dividido a França entre antes e depois daquele 14 de julho, mas algumas coisas da época não eram diferentes do país hoje.
Vinho era um lubrificante social, uma bebida para relaxar, para ser compartilhada. E era tremendamente popular: tinha os provenientes das grandes casas da Borgonha, de Bordeaux, de Champagne etc., adorados pela elite, e tinha vinho barato e acessível para o povo.
Só que ele era cada vez menos acessível. Impostos indiretos, de maneira geral, respondiam por 24% das receitas da Coroa nos anos 1640. Um século e meio depois, eles representavam quase 50%.
Uma diferença importante em relação aos dias de hoje era a quantidade de álcool consumida. Atualmente, após décadas de campanhas de conscientização, cada francês bebe 46 litros de vinho por ano, em média.
À época da Revolução, estima-se que a taxa era de 300 litros anuais — só em Paris. Segundo Gilbert Garrier, em "Histoire Sociale et Culturelle du Vin" ("História Social e Cultural do Vinho", sem edição brasileira), o parisiense bebia 15 vezes mais vinho do que cerveja.
O vinho, ou a forma abusiva como ele era taxado, disparou a revolta. O vinho, ou a forma como ele age no cérebro, ajudou a deixar as pessoas mais desinibidas e agressivas.
O suficiente para chutar agentes alfandegários, invadir a cidade e derrubar o sistema.
Revolta popular
Tradicionalmente, a visão que se tem da Revolução Francesa é uma de excessos. De acordo com Plack, isso começou a ser moldado no século 19, com o trabalho do historiador conservador Hippolyte Taine, que pintou as massas como uma multidão "sanguinolenta, perigosa, irracional e, acima de tudo, bêbada".
Taine teria usado a bebedeira para deslegitimar as ações violentas e agressivas das pessoas, ignorando as condições econômicas e sociais que as levaram ao limite.
Ao liberar as inibições das pessoas, o vinho teve um papel nesses eventos, mas isso não deve ser confundido com uma embriaguez perturbada, pois só alimentaria a caracterização negativa de Taine sobre os revolucionários", explica.
Em 1791, uma nova legislação entrou em vigor. Os revolucionários debateram uma reforma tributária, mas a pressão popular venceu: os impostos sobre vinho e outros produtos foram abolidos. Celebrações tomaram as cidades e as pessoas estavam bêbadas, de novo. Mas dessa vez eram porres exultantes, de felicidade.
Ao longo daqueles anos turbulentos, tomar vinho virou um ato político. Os jacobinos, os revolucionários mais radicais, só consumiam tintos de mesa comuns, em tavernas. Foi uma época difícil para os brancos, espumantes e para os vinhos de luxo de maneira geral, que chegaram a ser proibidos na França entre 1792 e 1795.
Em 1798, ficou evidente que manter a bebida totalmente livre de impostos era inviável. O orçamento das grandes cidades estava cada vez mais minguado, então as taxas voltaram. Mas não da mesma forma. Elas eram cerca de oito vezes mais baixas do que as dos tempos do Antigo Regime, segundo Garrier.
Além disso, pelo menos em teoria, os novos impostos foram fruto do processo democrático, debatidos e aprovados em um modelo de democracia representativa moderna. Não empurrados goela abaixo por uma monarquia absolutista.
"O vinho disparou protestos e elevou a conscientização sobre taxação, levando cidadãos comuns a participar na criação de um novo regime fiscal", explica Plack. Para ela, a bebida foi essencial na experiência revolucionária.
"É evidente que questões de consumo, igualdade e o papel social do álcool tiveram relevância na formação da política fiscal do novo governo.
Também está claro que o vinho de preço moderado foi um resultado tangível e simbólico da Revolução Francesa."
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