Mel de abelha nativa em extinção é considerado um 'ouro líquido' na cozinha
Ela se chama Emerina. Seu corpinho mede dois ou três milímetros. Pelo tamanho diminuto, faz parte da tribo das abelhas 'mirins'. É mansa e não tem ferrão — se chegar perto de você, nada de sair correndo. Pode ser toda preta, mais branquinha, amarelada ou até quase transparente.
Mais popular na região Sul do Brasil, do Paraná ao Rio Grande do Sul, ela adora o frio e se reúne em enxames numerosos, mas escassos. Tão escassos que figura na lista de espécies ameaçadas de extinção. Felizmente — e graças ao mel que produz —, agricultores, comerciantes e chefs estão se mobilizando para melhorar esse cenário.
Assim como as outras mais de 300 abelhas brasileiras sem ferrão, a Emerina dá origem a um mel que mal se parece com o que compramos aos montes nos supermercados.
Esse outro, mais doce, plano e com pouquíssima água na composição, é proveniente da Apis mellifera, abelha fruto de um cruzamento de espécies europeia e africana que se deu muito bem em território nacional pelo tamanho, ferrão e força — é por causa delas que você se acostumou a fugir ao ouvir um zum-zum-zum.
"O mel de Apis não traz surpresas para o consumidor", diz Katherina Cordás, diretora Centro de Pesquisa e Criatividade TUJU . Já o de abelhas nativas tem pouco açúcar e muito mais água.
Para o produtor de leite Artur Schmitt, que desde 2017 cria no sítio em Arabutã (SC) três tipos de abelhas, o mel da pequenina é "o melhor do mundo em questão de sabor".
Não traz doçura, mas um azedo único. É ouro líquido".
A comparação com o mineral faz sentido olhando não só a cor do ingrediente, como também a raridade e valorização.
Para alavancar a produção no campo, Eugênio e Márcia Basile, casal por trás da empresa Mbee, responsável pela intersecção entre produtores e cozinheiros, pagam pelo quilo de mel de Emerina o quádruplo do de Jataí (abelha nativa mais comum) e catorze vezes mais do que o tradicional de Apis.
Na mesa dos chefs
A individualidade — cada temporada traz uma experiência — e a fermentação espontânea (que traz notas de limão e acidez) são ainda mais marcantes no mel de Emerina. Considerado um dos mais complexos do país, tem grande apelo gastronômico em pratos doces e salgados.
"Funciona muito bem para quem quer usar mel, mas sem aportar muito dulçor à receita", diz Ivan Ralston, chef do restaurante paulistano Tuju, fechado na pandemia e com reabertura prevista para início de 2023.
Além disso, a possibilidade de fazer bem para a biodiversidade brasileira encantou outros cozinheiros para além do sabor.
"Provei pela primeira vez no Tuju. Ainda me lembro da empolgação com que Ivan carregava o prato. Todos os meles nativos me chamam atenção pela sua acidez, mas o de Emerina carregava um impacto positivo a mais", explica Luiz Filipe Souza.
À frente do Evvai, 67º melhor restaurante do mundo segundo o prêmio 50 Best, ele usa o mel sazonal para laquear o porco servido com berinjela, abrilhantar a torta de queijo de cabras e fazer pão de mel. "Pelo volume que chegamos a usar, acabamos uma vez com o estoque disponível que a Mbee tinha para fornecer, o que é ótimo e incentiva os produtores a ampliar as colmeias".
Polinização conjunta
Embora a Emerina não tenha ferrão (você já leu isso aqui), dá para aproveitar o termo para dizer que uma turma de pessoas foi "picada" pela vontade de fazer o mel se tornar conhecido e salvar a espécie.
Tudo começou há cerca de cinco anos. Daniel Theobald enviou junto do lote de meles para a Mbee envazar e distribuir uma amostra de Emerina. "Eu experimentei e pirei", conta Eugênio, que logo levou o produto para Ivan experimentar.
Ele também adorou e me fez uma proposta dizendo: arruma produtor desse mel que tudo que precisar para viabilizar eu assumo".
Daniel, criador de treze espécies em Seara (SC), ficou surpreso com a ideia e a aceitação. "Eu não esperava. O pessoal da minha região quer meu doce. Então, assim como não tem comércio dele aqui, achei que não teria em São Paulo".
O jeito de Eugênio convencer ele e demais meliponicultores de que valia a pena se dedicar à Emerina, mesmo com o baixo rendimento (cada enxame enche um vidrinho de 200 gramas por ano), foi colocando o preço lá em cima. "Conto quanto eu pago e os criadores ficam tentados".
Mas o trabalho não se resume ao dinheiro: requer resiliência.
Entre conseguir as abelhas, proporcionar um ambiente saudável para elas viverem bem e finalmente extrair o mel leva pelo menos um ano.
Daniel encontrou nesse desafio uma missão. "Coloquei plantas e flores nativas na propriedade e, com os anos, a vegetação que estava derrubada foi se recuperando. A Emerina, que era difícil de encontrar, começou a sair das minhas caixinhas de criação para a natureza. Agora, tenho 200 enxames e há uns vinte espontâneos no campo".
Além de revitalizar o próprio entorno, Daniel realizou encontros com agricultores vizinhos. "As pessoas viam Emerinas e não sabiam que eram elas. Por isso, começamos um trabalho de divulgação, preservação e resgate".
O pensamento de Artur, de Arabutã (SC), é parecido:
Ter a certeza do comércio me incentivou a crescer o plantel e ter cada vez mais enxames dessa abelha querida que estamos tirando da extinção".
Não é ilusão
Para Jerônimo Villas-Bôas, mestre em gestão ambiental e especialista na cadeia de produtos da sociodiversidade, a ideia de salvar uma abelha por meio da apreciação do mel não é ilusória.
"Com ampliação do modelo convencional de agricultura, do desmatamento, da monocultura e do agrotóxico no Brasil, as espécies estão sendo pressionadas. Enquanto isso não se muda, existe um aspecto de curto prazo que tem salvado as abelhas: o manejo sustentável".
Consumir o mel, que é o fruto do trabalho desses guardiões é uma forma de valorizar o trabalho deles e, consecutivamente, proteger as abelhas".
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