'Vila-fantasma' na Itália cobra por entrada e atrai milhares de turistas
O projeto das "casas de 1 euro" ficou famoso nos últimos anos na Itália ao incentivar a ocupação de propriedades abandonadas em cidades e vilas decadentes do país. É uma forma eficaz de chamar a atenção, pois a ideia correu a internet e saiu na imprensa do mundo todo. Com os holofotes, o plano é tentar alavancar o turismo, e a economia de maneira geral, de locais cuja população despencou nas últimas décadas.
Mas não é a única medida criativa de estímulo ao turismo dos últimos anos. Isso no país que é símbolo máximo dessa indústria e que, erroneamente, podemos achar dispensa estímulos.
Erguida no alto de um platô instável, Civita enfrenta há séculos terremotos, deslizamentos de terra e erosão. O êxodo da população é só mais um desafio à vila. Mas, contra todas as expectativas, ela vem atraindo cada vez mais turistas e investimentos.
Civita di Bagnoregio foi fundada pelos etruscos há 2,5 mil anos. Fica na província de Viterbo, no Lácio, 120 quilômetros ao norte de Roma. Os registros de instabilidade da colina onde ela fica são antigos: na Idade Média, o platô era três vezes maior e a cidade tinha 3 mil habitantes. Hoje, são cerca de dez moradores fixos.
O rio que corta o vale engole, aos poucos, o morro de baixo para cima. Na composição do solo, há tufos (rochas pouco densas) em estratos frágeis de areia e argila, o que o torna muito suscetível à erosão. Pedaços inteiros da cidade despencaram ao longo do tempo.
Em 1695, um terremoto deixou a sobrevivência ainda mais delicada, e boa parte da população, incluindo o prefeito e o bispo, foi embora. Mais tarde, desmoronamentos separaram Civita e Bagnoregio, dando a feição de ilha flutuante fantasmagórica que vemos. Isolada, Civita virou um distrito de Bagnoregio, e a ponte de pedestres que as une serve para os moradores terem acesso a serviços básicos, como ir ao mercado.
Nos anos 1920, eram cerca de 600 habitantes em Civita. Nos 1990, ela estava praticamente desabitada. Em 2019, eram cerca de dez habitantes — e 1 milhão de visitantes. Mesmo a pandemia não afetou muito o fluxo. No ano passado, os turistas estrangeiros foram substituídos pelos locais, em mais um exemplo do aumento do turismo regional, em muitos países, que a covid-19 provocou.
De fantasmagórica e abandonada, ela já não tinha mais nada. Isso graças a um truque velho, manjado e, quando bem usado, irresistível de marketing. Por que oferecer de graça essa vista esplendorosa quando você pode cobrar uma taxa módica de entrada?
Do abandono aos 3 mil turistas por dia
Em 2013, a administração de Civita tomou uma medida ousada para incrementar um turismo que já vinha crescendo aos poucos com os festivais culturais e outras atrações, boas para um bate-volta de fim de semana dos romanos. A ideia era cobrar para entrar na vila.
A geografia que quase exterminou o vilarejo algumas vezes no passado dessa vez virou aliada. Tanto como provedora de um cenário único como no papel de fiadora do plano. A ponte de pedestres é a única forma de se chegar a ela, então instalar um guichê e cobrar pelo acesso à vila foi fácil.
Deu bastante certo. A ponte, por si, já se mostrava um cenário bem instagramável, então cobrar uma pequena taxa para entrar ajudaria a criar a impressão de que Civita é mais um parque temático da Itália medieval do que uma cidade de verdade.
Polêmico. Não havia nada assim em toda a Itália. Mas o plano seguiu adiante.
"Visite Civita. Pague uma taxa simbólica de 1,50 euro e ajude a preservá-la" era a mensagem aos visitantes. "Houve problemas e resistência no início. Mas a medida atraiu jornais e programas de televisão", lembra Roberto Pomi, porta-voz de Civita.
A "cidade que está morrendo", o "castelo no céu", como ela às vezes é chamada na imprensa, começou a entrar no radar de cada vez mais gente. Se em 2010 as seis cidades da região juntas atraíram 40 mil turistas, oito anos depois só Civita recebeu 25 vezes mais que isso.
A taxa de entrada, hoje de 5 euros, é revertida em investimentos na infraestrutura. Os efeitos também são positivos para Bagnoregio, que pode até parecer uma metrópole perto de Civita, mas é uma pequena cidade de 3 mil habitantes, com muitos dos mesmos desafios enfrentados por outras do mesmo porte no país.
Os moradores não pagam mais impostos municipais. O desemprego despencou para menos de 1%. Pequenos negócios, como restaurantes e pousadas, se espalharam feito cogumelo.
A localização de Civita faz dela um ótimo destino para excursões de um dia ou como parada ideal na rota turística entre Roma e Florença. Agências de turismo a incluem em seus itinerários, algumas dando tempo apenas para os turistas cruzarem a ponte, tirarem umas fotos e voltarem ao ônibus.
Já existe um excesso de turismo bate-volta, que causa muito e gasta pouco, segundo alguns moradores ouvidos pelo site CNN Travel. São aqueles visitantes que chegam, tiram trocentas selfies e não entram em uma loja sequer.
"Civita tem problemas com picos de fluxo de turistas, nos feriados da Páscoa e do 25 de abril [dia da libertação do nazi-fascismo na Itália, em 1945]", reconhece Pomi. "Mas, no resto do ano, estamos falando de algumas centenas de visitantes por dia. Considerando que o passeio dura algumas horas e que as pessoas não chegam ao mesmo tempo, não há situações fora de controle em 360 dias no ano", explica.
Solo frágil
O sucesso de Civita já levantou questões quanto ao turismo excessivo e também à segurança do terreno. Pode um solo frágil daqueles suportar algumas milhares de pessoas? Segundo a "National Geographic", em cinco anos a movimentação de turistas no centro de Civita causou a perda de 30 centímetros de solo em uma praça que teve mil anos de estabilidade.
Essa é uma das questões tratadas pelo Museu Geológico, uma das poucas instituições localizadas na vila. Com registros de deslizamentos de terra desde o século 15, ele informa turistas e moradores sobre o passado cultural e geológico da região e estuda formas de garantir um futuro sustentável.
O dinheiro que vem da bilheteria, além do museu, serve também para ajudar nas intervenções para estabilizar a falésia em que Civita se debruça. É uma das exigências, inclusive, feitas pela Unesco — em 2017, a "paisagem cultural de Civita di Bagnoregio" se tornou postulante ao título de patrimônio cultural da humanidade.
"A candidatura nos obrigou a desenhar um sistema de monitoramento dos movimentos da falésia e do vale", diz Pomi. "Mas a erosão não é causada por multidões de milhares de pessoas que chegam a cada hora — o que não existe", reforça.
"A erosão é um fenômeno da natureza local. Nosso desafio é governança, não proibição, porque não há uma 'invasão' de turistas, há um crescente interesse. Devemos evoluir para que os visitantes fiquem mais dias, o que vai gerar mais empregos e movimentar mais a economia."
Ao se transformar em um museu a céu aberto com cobrança de ingresso, Civita se beneficiou do marketing, e também acabou envolvendo seus habitantes, que, de uma forma ou de outra, viraram atração turística. É uma situação delicada, mas com exemplos pragmáticos bem-sucedidos. Um deles transformou a casa da família em pousada. Outro, um fazendeiro, resolveu abrir seu porão e expor as antigas ferramentas, passadas de geração para geração na sua família.
Além disso, tradições mantêm o senso de comunidade, e o crescente influxo turístico melhorou a autoestima local. A procissão de Sexta-Feira Santa é o ritual mais antigo da cidade, demanda meses de organização e conta com centenas de participantes da região, idosos e jovens. Isso fortalece a identidade local e ajuda a impedir que a vila se transforme naquilo que a cobrança de ingresso pode levar a crer: uma cidade cenográfica, um parque temático. Não se trata disso. É um lugar de verdade, buscando alternativas viáveis para fomentar o turismo.
"Civita deu passos importantes, mas não atingiu a perfeição. Temos um longo caminho a percorrer", diz Pomi. Uma história de sucesso que pode inspirar as outras 2,5 mil cidades italianas que enfrentam a queda da população e o êxodo rural.
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