No Dia do Garçom, quatro veteranos do 'servir bem' contam suas histórias
"Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada"
Gravada em 1935, Conversa de Botequim, de Noel Rosa, é do tempo em que garçons vestiam paletó branco e gravata borboleta, não importava o tipo de ambiente. É fácil imaginar até o guardanapo branco, cuidadosamente dobrado sobre o antebraço. Repare como o tom da conversa era próximo, típico de quem conhece o lugar como a palma da mão, mas ao mesmo tempo formal, sem muita intimidade.
Era desse mesmo jeitinho que trabalhavam os primeiros garçons da história, muito tempo antes do clássico de Noel. A profissão surgiu na segunda metade do século 18, na França, quando os proprietários de estalagens começaram a caprichar mais na cozinha e no atendimento.
No livro "A Invenção do Restaurante" (Record), a autora Rebecca L. Spang conta como as antigas mesas comunais, servidas pelos próprios donos, evoluíram aos poucos para mesas individuais.
Da mesma forma, os pratos únicos, mais rústicos, foram saindo de cena e dando lugar a cardápios que permitiam aos clientes — gente cada vez mais elegante — escolher o que queriam comer. Vêm daquela época algumas regras de ouro do bom atendimento, que os garçons à moda antiga fazem questão de manter, como a presença atenciosa e eficiente sem ser invasiva.
À moda antiga, sim, porque a profissão mudou. "Acho que a geração dos garçons de carreira está acabando. O jovem não almeja crescer e virar maître porque o cargo não tem o glamour de ser chef", opina a restauratrice Marie-France Henry, proprietária do La Casserole, no centro de São Paulo. Fundada em 1954, a casa é uma das últimas da cidade a manter rituais que exigem uma senhora perícia do garçom - parte das receitas é finalizada no salão, diante do cliente.
A alta rotatividade dos novos profissionais também impede que se estabeleçam relações duradouras entre garçom e cliente. O tradicional "O de sempre, doutor?" estará com os dias contados?
Não enquanto Gildo, Moisés, Ramos e Tia Luiza estiverem na ativa. Para celebrar o Dia do Garçom, comemorado em 11 de agosto, Nossa conta a história desses quatro garçons que fazem parte do primeiro time paulistano. Com muita quilometragem nos salões — juntos, os quatro somam mais de um século e meio de experiência —, eles mostram por que sentem tanto orgulho de seus uniformes.
Uma pizza antes do expediente da Speranza
é combustível do animado Ramos
Uma das mais tradicionais pizzarias de São Paulo, a Speranza abre as portas pontualmente às 18h. Quem chega cedo já encontra o garçom José Francisco Ramos, 58 anos, de prontidão, sem imaginar que ele foi o primeiro a traçar uma pizza — geralmente a margherita — nos bastidores do salão. O ritual se repete há quase três décadas, desde que ele trocou o atendimento no bar pela função de garçom.
Baiano de Encruzilhada, Ramos deixou pai, mãe e 10 irmãos para tentar a vida na cidade grande, em 1985. Jovenzinho, só encarou a longa viagem de ônibus porque era preciso reforçar o orçamento da casa. "Não queria largar minha família e demorei a me convencer. Meu irmão mais velho veio antes e foi me buscar na rodoviária, fiquei assustado com o tamanho da cidade", lembra.
Com ajuda do irmão, fez amigos e conseguiu empregos. Trabalhou como faxineiro em um banco e como office boy em uma farmácia. Até que, durante uma pelada de fim de semana, ficou sabendo que havia uma vaga na cozinha da pizzaria, no bairro do Bixiga. "Entrava às 18h e saía à 1h30. Passei uns três anos descascando batata, fazendo molho e cozinhando macarrão, até ser transferido para o bar."
De trás do balcão, Ramos trabalhava ligado no que acontecia no salão. Observava os garçons na lida e, de tanto estudar o cardápio, já conhecia os pratos de cor.
Uma bela noite, seu destino mudou — com a equipe reduzida em função de um garçom que havia faltado, Ramos notou, lá do seu cantinho, que uma pizza esfriava na boqueta sem que ninguém a buscasse.
Corri lá, peguei a pizza, cortei e servi. Uma criança estranhou meu uniforme, que era diferente e tinha boné, e eu brinquei dizendo que era o capitão. Meu patrão viu tudo de longe e me avisou que, no dia seguinte, eu não voltaria mais para o bar porque seria garçom."
Ao longo de quase três décadas, Ramos conquistou clientes que não abrem mão de sentar na sua praça. E orgulha-se de ser tratado com carinho mesmo fora dos limites do restaurante. "Tem gente que me encontra na rua, faz uma festa e até me apresenta aos amigos."
A relação com a família Tarallo, proprietária da Speranza, sempre foi especial, o que ajuda a explicar a paixão que Ramos tem pela profissão. Orgulhoso das filhas formadas em pedagogia e design gráfico, com três netos e uma neta a caminho, ele diz que ficaria muito feliz se uma das crianças quisesse seguir os passos do avô.
Sempre falo para meus colegas: se pudesse nascer de novo, queria nascer dentro da Speranza."
Que chef que nada
no La Casserole, quem tempera o steak tartar é o Moisés
Nascido em Timbaúba, no sertão pernambucano, Moisés de Souza Silva tem 52 anos de idade e 34 de La Casserole. Fez as contas? Em 1988, ele era um jovenzinho recém-chegado à maioridade quando entrou em um ônibus e enfrentou três dias de estrada para viver com os tios na maior cidade do país.
O coração vinha apertado. A mãe tinha morrido um mês antes e ele deixava para trás o pai, Severino, sozinho com os seis irmãos mais novos. "Estava animado, mas preocupado com eles. O mais novinho tinha só dois anos, eu era muito apegado", lembra. Telefonar era caro, mesmo do orelhão — a saudade, Moisés matava escrevendo cartas.
O tio, outro Severino, era subchef de um restaurante francês muito chique no Largo do Arouche e arrumou para o sobrinho um emprego como lavador de louça. Os dois saíam juntos do Itaim Paulista, onde Moisés dormia em um sofá-cama na sala, e sacolejavam por duas horas e meia até o La Casserole. De tanto acompanhar o vaivém dos cozinheiros, o garoto quase se tornou um deles. Começou a ajudar no preparo dos ingredientes, aprendeu a fazer algumas receitas, sabia até pilotar a chapa e deixar a carne no ponto certo. Mas, bom de papo que só, acabou sendo convocado para o salão.
De cumim a garçom, foram três anos de aprendizado — no La Casserole, vestir blazer branco com calça preta e gravata borboleta não é para qualquer um. Tem que saber temperar o steak tartar com precisão e sem usar cola, porque a finalização acontece diante do cliente.
É o prato mais difícil. Se eu vacilar, carrego na mostarda e estrago tudo."
E o gigot d'agneau então? O pernil de cordeiro só fica gostoso quando é delicadamente fatiado bem na hora de servir. São espetáculos tão bonitos de ver que a patroa de Moisés, Marie-France, já perdeu as contas de quantas vezes foi intimada a tirar fotos de clientes ao lado do garçom, em plena atividade.
"Tenho uma coleção dessas fotos. Alguns até exigem que seu tartar seja temperado pelo Moisés", ela conta.
Dos pratos franceses que são clássicos do restaurante quase septuagenário, Moisés garante que gosta de todos. Ama steak tartar, filé au poivre e coq au vin. Mas quem aquece seu coração de verdade são as tripes à la mode de Caen, feitas com dobradinha.
Me lembra a buchada que comia em Pernambuco."
No Bar Brahma,
as mesas atendidas por Tia Luiza são as mais disputadas
Ela é a simpatia em pessoa. Aos 67 anos, a falante Luiza Queregatte ganhou o apelido quando chegou ao Bar Brahma, lá se vão 21 anos, e assim se tornou conhecida pela clientela fiel.
É assim que meu nome aparece no crachá, olha só: Tia Luiza", exibe orgulhosa.
Trabalhar como garçonete era um sonho de infância que, naquela época, parecia distante. Era mais provável que seguisse os passos da mãe, Gerônima, e se tornasse empregada doméstica. "Morava com meu pai, minha mãe e três irmãos em um barraco sem banheiro em Pirituba. Ainda criança, parei de estudar e comecei a trabalhar em casas de família para ajudar."
Aos 13, uma vizinha que trabalhava em restaurante a apresentou a um mundo novo e bem mais alegre. Tia Luiza arrumou emprego de balconista, logo foi promovida a garçonete e nunca mais quis largar dessa vida. Diz que nasceu para isso. Nem mesmo o casamento a demoveu da ideia — quando o marido exigiu que deixasse de trabalhar, achou mais negócio se separar. "Não dava para ficar em casa só olhando para ele", hoje acha graça. "Criei meus três filhos com meu trabalho."
Tia Luiza é o tipo de profissional para quem não há tempo ruim. Vizinha da represa de Guarapiranga, pega três ônibus para chegar à Avenida Ipiranga com São João, a esquina mais famosa da cidade. Entra às 11h e, na teoria, encerra o expediente às 18h, mas não se importa de esticar o turno se o movimento é grande. "Fico até a hora que for preciso", avisa. "Entro brincando e saio rindo, continuo com o mesmo bom humor até a madrugada."
Tamanha simpatia garante clientes fiéis e gorjetas polpudas — no meio da entrevista, ela saca do bolso uma nota de R$ 50, recebida minutos antes de um único freguês. Mas as caixinhas generosas não chegam só pelos sorrisos fartos, ela acredita. Saber lidar com clientes que não estão para conversa e estar atenta à velocidade do serviço, diz, ajudam um bocado.
No almoço, o atendimento tem que ser rapidinho. Se um prato demora, já vou à cozinha brigar antes que o cliente reclame. À noite é mais light, as pessoas vêm para relaxar, mas quando sinto que a pessoa não está para brincadeira, sei esperar. Às vezes, quando volto depois do primeiro chope, ela já está outra."
A quem pergunta sobre o futuro, Tia Luiza tem a resposta na ponta da língua. O ano e meio que passou em casa, durante a pandemia, deixou a certeza de que a aposentadoria está fora dos planos. "Acho que vou ser como o Seu Luiz, do Bar Leo [Luiz de Oliveira, que morreu em 2017, aos 95 anos, ainda na função]. Quero ficar até quando me quiserem."
Da roça para o Freddy:
prazer, Gildo, maître e sommelier
Aprendi olhando, nunca tive aula."
É assim que Ermenegildo Irineu Oliveira, 62 anos, explica sua formação profissional. Nascido na pequenina Itapipoca, cidadezinha do Ceará onde até faz um tiquinho de frio de vez em quando, ele cresceu em um sítio, entre plantações de milho, feijão e arroz, por onde circulavam também as cabras que o pai criava.
Terceiro de oito filhos, já acalentava o sonho de tentar a vida na cidade grande quando tivesse mais idade. E assim foi — aos 18, com apenas o curso primário concluído, aproveitou o convite de um cunhado para zarpar em direção a São Paulo.
Era dezembro de 1977. Durante a viagem que durou 50 horas, a ansiedade era imensa. "Eu nem imaginava o que estava me esperando", confessa. Como muitos imigrantes nordestinos que chegavam e ainda chegam à cidade, conseguiu o primeiro, o segundo e o terceiro empregos em restaurantes. Começou como copeiro, passou a cumim, operador de caixa e garçom. Mas a carreira deslanchou de verdade quando assinou o contrato no Freddy, em 1988.
Suntuosa, a casa de cozinha francesa foi inaugurada em 1935 e mantém, até hoje, a elegância de outros tempos. Sério, eficiente, atencioso, Gildo foi subindo na função. Não perdia uma palestra oferecida pelos fornecedores de vinhos e, assim, foi aprendendo a conhecer a bebida preferida pela clientela abastada.
Entendeu que vinho harmonizava com os pratos do cardápio, inteiramente listado em francês, e passou a fazer sugestões acertadas. Tanto fez que virou maître e sommelier.
Gildo não é do tipo esfuziante, embora os colegas o classifiquem como comunicativo.
Ele é uma referência para a clientela mais antiga. Tem um senhor que já chega ao restaurante de braços abertos chamando pelo 'Guildo'. O Gildo dá risada, fala bem-vindo, mas não perde a elegância", conta Luís Carlos de Morais, colega de profissão há 17 anos.
Nem fregueses mal-educados são capazes de tirá-lo do sério. Certa vez, relata Morais, um homem ficou bravo por qualquer razão e descontou a frustração em Gildo, que soube se conter e deixou passar. "Dois meses depois, esse cliente voltou e deu um abraço nele."
Gildo não perdeu a fleuma nem mesmo quando viu o filho caçula, Welligton, 30 anos, entrar no Freddy como cliente. Era novembro de 2021 e uma mesa de oito lugares, na praça atendida por Gildo, estava reservada para uma comemoração de aniversário. "Meu pai não sabia, resolvi ir em cima da hora", explica o filho, que pediu Chateaubriand Moutarde, o filé alto ao molho de mostarda, mesmo prato preferido do pai.
Ele ficou surpreso, mas muito controlado, e me serviu de forma profissional. Essa é a personalidade dele."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.