Adoração por gatos não é de hoje: antiga capital egípcia cultuava bichanos
Algumas covas eram muito largas. Esvaziamos uma que tinha mais de 20 metros cúbicos de ossos. Isso dá uma ideia da quantidade de gatos necessária para enchê-la."
Em 1891, o arqueólogo suíço Édouard Naville dedicou algumas páginas de seu relato a um estranho cemitério de gatos encontrado nas ruínas de Bubástis, uma esquecida cidade egípcia que desde o século anterior vinha sendo redescoberta pelos exploradores europeus. As escavações de Naville ganharam uma substanciosa cobertura da imprensa na época, e seus estudos mostraram com mais profundidade a relação dos antigos egípcios com os felinos.
Localizada no Delta do Nilo, próxima da moderna Zagazig, essas ruínas de granito vermelho eram, há 2,9 mil anos, a capital do Egito Antigo, ao longo da 22ª dinastia, e o centro do culto a Bastet, a deusa com cabeça de gata cujo pico de popularidade se deu nessa época. Os faraós dedicaram um templo a ela, e os festivais, frequentados por milhares de homens e mulheres, deslumbraram o historiador grego Heródoto por volta de 450 a.C.:
"Quando chegavam a Bubástis eles faziam grandes sacrifícios e bebiam mais vinho do que em todo o resto do ano."
Amor felino
Eva Lange-Athinodorou, egiptóloga, em um artigo para o Centro Americano de Pesquisa no Egito, escreveu que "a natureza orgiástica desses eventos geralmente está ligada à fertilidade dos gatos e a seu comportamento conspícuo durante a época de acasalamento". Por essas e outras, os bichanos eram venerados a ponto de ter funerais.
Mas Bastet nem sempre teve rosto de gato. No princípio, a deusa da fertilidade era outro felino.
As referências mais antigas à deusa foram encontradas mais ao sul, na pirâmide de Djoser, em Sacará, a necrópole de Mênfis. O culto chegou a Bubástis em cerca de 2270 a.C., durante o chamado Antigo Império. Assim como em Mênfis, Bastet, no princípio, tinha cabeça de leoa.
Segundo uma teoria, a grande quantidade de gado disponível no Delta do Nilo atraía muitos felinos. O espetáculo da caçada das leoas teria encantado os egípcios.
Por causa dessa fúria leonina, Bastet era originalmente ligada à guerra ou à proteção direta do faraó, não à fertilidade. Foi somente no Novo Império, a partir de 1552 a.C., que ela começou a exibir também a cabeça de gata e a assimilar propriedades mais ligadas a fertilidade, criação e cuidado. Os aspectos perigosos e destrutivos ficaram mais ligados a Sekmet, outra deusa com cabeça de leoa.
Coincidentemente, foi nessa época que os gatos domésticos começaram a conviver com os egípcios.
"O Império Médio [que terminou em 1650 a.C.] foi a primeira vez em que gatos, embora ainda parecidos com sua forma selvagem, Felis silvestris, apareceram como bichos de estimação em pinturas de tumbas", explica Athinodorou.
Se no Império Médio eles tinham uma função bem definida, a de caçar ratos, no Novo Império eles já eram o que são hoje: animais de companhia.
Ao longo do último milênio antes de Cristo, Bastet se difundiu por todo o Egito, atraindo a curiosidade de outros povos. Até na Bíblia a cidade foi parar. O "Livro de Ezequiel", das Bíblias judaica e cristã, menciona Bubástis (ou Pi-beseth, em hebraico) e seu templo pagão — que será destruído pela ira divina.
Pudera. Heródoto, de novo ele, sobre o santuário: "apesar de haver outros maiores e mais custosos, nenhum é mais prazeroso aos olhos".
Deus pode não ter exterminado Bubástis, mas a cidade acabou desaparecendo. Com a conquista islâmica do Egito no século 7º d.C., ela caiu no esquecimento.
A redescoberta
Mais de 1100 anos depois, Napoleão Bonaparte invadiu o Egito, então um território do Império Turco-Otomano. Além de soldados havia uma tropa de estudiosos e pesquisadores afoita por descobrir o que fosse possível daquela civilização que povoava o imaginário europeu.
Um deles, Étienne-Louis Malus, inspirado pelos relatos de Heródoto sobre aquela cidade perdida no Delta do Nilo e por outros textos da Antiguidade, localizou o Templo de Bastet. Novas expedições se seguiram até a de Naville, em 1887.
A partir de então, arqueólogos descobriram mais evidências do culto a Bastet, como estátuas de gatos mumificados, hoje espalhadas em vários museus do mundo.
Em 1906, a construção de uma ferrovia próxima a Bubástis (também conhecida como Tell Basta, em árabe) esbarrou em um tesouro que continha peças ainda mais antigas que o templo. Uma taça dourada trazia a inscrição de Tausret, rainha do século 12 a.C. citada por Homero na "Odisseia" por ser contemporânea, segundo a mitologia grega, à Guerra de Troia.
Desde 2008 um consórcio entre Egito e Alemanha mantém escavações na área, com descobertas significativas.
O fato de haver artefatos com inscrições não-egípcias e peças de prata, inexistente no país, mostra que Bubástis, no auge, era um importante centro comercial, que atraía estrangeiros vindos da Grécia, Anatólia (na atual Turquia) e Núbia (no atual Sudão). Era o poder dos gatos.
Como ir
As ruínas de Bubástis não fazem parte do roteiros turísticos clássicos no Egito, mas chegar a elas é simples. Do Cairo a Zagazig são menos de duas horas de trem. Da estação, táxis e tuk-tuks levam ao sítio arqueológico, distante 2,5 quilômetros. De carro, a partir da capital, é mais fácil ainda, porque as ruínas ficam pouco antes de chegar a Zagazig.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.