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Pirata inglês que teria deixado tesouro em Ilhabela inspira produção de rum

Ilhabela, no litoral de São Paulo, já foi cenário de expedições, batalhas e hoje tem produção de rum - Getty Images/iStockphoto
Ilhabela, no litoral de São Paulo, já foi cenário de expedições, batalhas e hoje tem produção de rum
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Glau Gasparetto

Colaboração para Nossa

17/08/2022 04h00

Quem visita Ilhabela e suas praias no litoral norte de São Paulo, a 210 quilômetros da capital, provavelmente não imagina que o arquipélago já foi adotado por piratas como base para saques e ataques na região. Ali, eles se preparavam para as investidas e comemoravam as vitórias, tendo o rum como bebida obrigatória em ambas as situações.

Reza a lenda que o corsário Thomas Cavendish deixou um grande tesouro escondido na ilha, o que alimenta a imaginação e as lembranças de muitos caiçaras.

Nascido em Trimley St. Martin, na Inglaterra, em 1560, Thomas Cavendish chegou a estudar em Cambridge, mas abandonou os estudos aos 17 anos, quando já administrava as terras herdadas dos pais. Ingressou facilmente no círculo social da corte real de Elizabeth 1ª, graças à irmã Anna, dama de companhia da rainha.

A veia aventureira fez com que se interessasse pela navegação e, mais que isso, quisesse repetir o feito de grandes nomes. Sua primeira façanha foi singrar os mares numa ambiciosa navegação ao redor do globo, imitando as conquistas do corsário Francis Drake, que era tido como herói nacional por suas navegações e assaltos contra colônias espanholas do Pacífico, bem como os navios do rei Felipe 2°.

Thomas Cavendish - National Portrait Gallery - National Portrait Gallery
Thomas Cavendish
Imagem: National Portrait Gallery

Costa brasileira como base

No livro "O Corsário de Ilhabela" (2008, Editora Ottoni), que traz os manuscritos traduzidos dos últimos dias de vida de Cavendish, o autor Paulo Edson conta que a primeira parada do pirata inglês no litoral de São Paulo aconteceu em novembro de 1586. Sua esquadra havia deixado as águas inglesas quatro meses antes, com o objetivo de navegar os mares de todo o mundo.

"A costa brasileira era ponto estratégico para corsários e navegantes ingleses que tentavam alcançar o Mar do Sul (Oceano Pacífico), fechado a estrangeiros pelos espanhóis. (...) No Brasil, os aventureiros encontrariam víveres para o reabastecimento, além de terem a oportunidade de interceptar navios carregados de bens e mercadorias com destino à metrópole", explica o escritor.

Na Ilha de São Sebastião (onde estão localizados a sede municipal e o centro histórico de Ilhabela), Cavendish e a tripulação atracaram e permaneceram por um mês, antes de cruzarem o Estreito de Magalhães, no extremo sul do Chile.

Um ano depois, atingiram a almejada costa do Pacífico na Califórnia e, de lá, seguiram saqueando vilarejos e portos em ilhas asiáticas, retornando à Inglaterra em 1588, depois de contornarem o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul.

Cavendish voltou rico à terra natal e ficou conhecido como o terceiro homem a circunavegar o globo — Fernão de Magalhães foi o primeiro, entre 1519 e 1522; e Francis Drake, o segundo, viajando entre 1577 e 1580.

Thomas Cavendish (1560-1592) - Getty Images - Getty Images
Thomas Cavendish (1560-1592)
Imagem: Getty Images

Ataque a Santos e São Vicente

Meia década após a bem-sucedida primeira viagem, Cavendish deixou o porto inglês Plymouth em agosto de 1591, com uma esquadra de cinco embarcações e aproximadamente 350 homens. Em dezembro, atracaram no canal de São Sebastião, entre a ilha e a cidade de São Sebastião, onde se prepararam para atacar Santos na noite de Natal.

À época, as vilas de Santos e São Vicente tinham o cultivo da cana e a produção do açúcar como principais atividades econômicas. Não à toa, havia por ali grandes propriedades com muitos escravos, ou seja, eram locais perfeitos para o reabastecimento da frota e saques.

Jeannis Michail Platon escreveu em seu livro "Ilhabela Seus Enigmas" (2006, Editora JM Platon Náutica) que, entre a metade do século 16 e o final do século 19, a ilha, "por seus sacos e baías, foi um paraíso tropical para piratas ávidos por ataques a embarcações e povoados do litoral paulista".

Segundo o escritor, "a base das operações era a baía de Castelhanos, particularmente o Saco do Sombrio, onde faziam tudo às escondidas, pois é invisível para quem passa ao largo devido às altas montanhas que o cercam".

"Além do Sombrio, outro abrigo natural utilizado pelos ladrões do mar era a Praia da Serraria, também nas proximidades. Entre um ataque e outro, os feitos eram comemorados nesses locais com festa regada a rum, vinho e farta comilança", destaca o autor.

De acordo com o escrito de Jeannis Michail Platon, foi no Saco do Sombrio que Cavendish arquitetou a invasão a Santos com cem de seus homens, a bordo de três navios. Dias após seus destacamentos dominarem o povoado, ele chegou com outras duas naus e permaneceu ali por dois meses.

Comerciante implora misericórdia de Thomas Cavendish  - Getty Images - Getty Images
Comerciante implora misericórdia de Thomas Cavendish
Imagem: Getty Images

Nesse período, levantaram fortificações, pilharam dinheiro, saquearam bens e outras riquezas e atearam fogo nas plantações.

Tesouro lendário

"Conta outro inglês, Anthony Knivet, membro da expedição de Thomas Cavendish, que ao retornar para Ilhabela, o corsário teria enterrado um fabuloso tesouro nas areas da Baía de Castelhanos, roubado na Vila de São Vicente", traz o livro "Ilhabela Seus Enigmas".

Há diferentes versões para o desfecho da história do corsário inglês, que nunca retornou aos mares de origem depois dessa expedição. Uma das variantes dá conta que ele foi vítima de motim dos marujos que sobreviveram à epidemia de escorbuto que ocorreu a bordo — ninguém queria voltar para o Reino Unido e, por isso, ele foi enforcado. A tripulação teria regressado à Baía de Castelhanos, onde se fixou.

Outra vertente diz que ele morreu em alto-mar, com estado emocional bastante abalado devido a sucessivas reviravoltas que enfrentou. Isso inclui a liderança desgastada; a necessidade de partir às pressas da costa paulista, sem provisões, depois de uma emboscada de portugueses e índios; e de ter enfrentado terríveis tempestades. Quando fugiu, queria alcançar a ilha de Santa Helena, na costa africana, território que nunca alcançou.

Pirata deu origem a rum

Cavendish Rum branco - Divulgação - Divulgação
Cavendish Rum branco
Imagem: Divulgação

De tanto ouvir o pai contar histórias sobre o famoso corsário que esteve no arquipélago em mais de uma ocasião, o empreendedor e mestre alambiqueiro Joseph Van Sebroeck não teve dúvidas ao criar um rum nascido em Ilhabela e batizá-lo de Cavendish.

Conforme ele conta, o lançamento da bebida, no ano passado, foi uma maneira de seguir os passos do pai Etienne Van Sebroeck, que em 1958 já produzia cachaça em um alambique na região. "Meu pai sempre me contava essa história quando eu era criança, então o rum foi uma forma de manter o seu legado vivo", argumenta Sebroeck.

O Cavendish Rum branco é produzido pela Destilaria Dona Filó e traz notas aromáticas de banana, cana-de-açúcar e especiarias. Versátil, pode ser consumido puro o como base para drinques (veja receitas abaixo). Seu teor alcoólico é de 40%, enquanto a versão envelhecida chega a 42%.

Em seu primeiro ano de vida, o rum brasileiro foi contemplado com a medalha de prata na mais recente edição do Seleção de Bebidas Espirituosas pelo Concurso Mundial de Bruxelas (Spirits Selection by Concours Mondial de Bruxelles - CMB).

Cavendish Rum branco - Divulgação - Divulgação
Cavendish Rum branco
Imagem: Divulgação

Por ser à base de cana-de-açúcar, o rum tem muito a ver com a cachaça. A história da bebida celebrada hoje remonta aos anos 1430, quando o alimento-base começou a ser cultivado nas ilhas do Caribe (Caraíbas), tendo vindo das Ilhas Canárias junto das esquadras de Cristóvão Colombo.

O rum pode ser feito de duas formas: a agrícola, em que é obtido diretamente do caldo de cana fermentado; e a industrial, feito a partir do melaço — caso da bebida de Ilhabela. A destilação pode ser feita em coluna de destilação ou em alambique.

Já a cachaça surgiu por volta de 1530, em São Vicente.

Tanto a cachaça como o rum possuem suas versões envelhecidas em madeira, processo adotado para conseguir que as bebidas criem características próprias, aromas e sabores particulares.

Navegando por Ilhabela

Veleiro Dalia - Divulgação - Divulgação
Veleiro Dália
Imagem: Divulgação

Além de ter seu próprio rum, Van Sebroeck quis que os apreciadores da bebida vivessem uma experiência diferenciada e parecida com a dos piratas. Seguindo as lendas, os corsários tomavam generosas doses da bebida antes dos saques, pois o teor alcóolico elevado os encorajava, e nas comemorações após as conquistas.

Numa parceria com o velejador Ubiratan Matos, caiçara de São Sebastião, eles criaram um passeio por Ilhabela para contar a ligação do litoral norte com o pirata famoso e, consequentemente, com o rum.

"Escuto muito essa história desde que eu nasci, pois meus tios contavam com o meu avô e a minha avó. Eles falavam que o Cavendish, após ter saqueado a Vila de Santos, voltou para se organizar aqui, na praia, e esconder seu tesouro. Dizem que tem outro dos tesouros na Praia do Gato", relata Ubiratan, proprietário do Veleiro Dália, de 80 pés, que é palco para o passeio regado a rum.

Seu pai nasceu e foi criado em uma das comunidades mais famosas e das praias mais bonitas de Ilhabela, a Praia do Bonete. A família acumula histórias referentes ao mar. Seu avô Jacinto acompanhou "ao vivo" o maior acidente de transatlântico na costa do Brasil, o naufrágio do espanhol Príncipe de Astúrias, em 1916, quando morreram quase 500 pessoas. "Ele estava pescando e viu tudo", afirma Ubiratan.

Bebendo como piratas

A bordo do veleiro Dalia - Divulgação - Divulgação
A bordo do veleiro Dalia
Imagem: Divulgação

No intuito de oferecer uma experiência ainda mais intensa e diferenciada para a apreciação do rum, Joseph e Ubiratan apostam nos passeios a bordo da embarcação clássica. O passeio é feito através de agendamento e, durante todo o percurso, um bartender prepara drinques feitos com o rum nascido em Ilhabela.

A embarcação é inspirada nas famosas escunas Nokomis e Lafayette, do século 19, elaboradas para pesca e reformuladas para velejar. "É uma oportunidade de se sentir dentro da história por meio de um passeio na embarcação", ressalta Ubiratan.

Enquanto velejam pelo canal de São Sebastião, o grupo participante também ouve a história do barco e experimenta a sensação de viajar e até mesmo comandar uma embarcação do gênero.

Barris de carvalho com rum a bordo de veleiro - Divulgação - Divulgação
Barris de carvalho com rum a bordo de veleiro
Imagem: Divulgação

Serviço

A saída do veleiro para os passeios de três horas costuma ocorrer no Píer da Vila, pela manhã ou após o almoço. Atualmente, o agendamento é feito por email (ubmatos@alambiquedonafilo.com.br) ou telefones: (12) 99172-3765 e (12) 99176-8119.

Primeira adega flutuante

Antes destinado apenas aos passeios etílicos, o Veleiro Dália entra numa nova fase e, segundo os empreendedores, foi transformado na primeira adega flutuante do País. No porão do barco ficam os 14 barris de carvalho, que acomodam quase 3 mil litros de rum a bordo.

O tempo de envelhecimento do primeiro lote é de 3 anos, mas a ideia é ter lotes com mais tempo de maturação no futuro, além de dobrar a quantidade de barris disponíveis.

Drinques à base de rum

Que tal preparar alguns drinques que têm o rum como destaque?