Muito além do Peru - e do peixe cru: como o ceviche conquistou o Brasil
O princípio do ceviche é simples. Nada mais é que a técnica de cozinhar peixes e frutos do mar em limão ou outra fruta cítrica — a acidez altera a textura e o sabor das proteínas. Embora seja um prato que se associe mais comumente ao Peru, onde foi elevado a patrimônio cultural em 2004, é encontrado por toda a América Latina.
Do Chile ao México, há diferentes versões, a depender dos ingredientes disponíveis e do gosto de cada um. Preferências à parte, um gosto essencialmente cítrico e refrescante, ideal para o verão. No Brasil, o ceviche foi abraçado pelos paulistanos principalmente como opção para as noites quentes, acompanhado de uma boa cerveja.
Quando se fala em ceviche, a conversa oscila entre o afetivo e o passional, especialmente com latino-americanos. Remete a lembranças com a iguaria, a disputa em torno de sua origem (os peruanos se autodeclaram o país onde surgiu) e do que pode ou não ser chamado de ceviche. É também parte da cultura em torno do prato alardear seus supostos poderes: seria afrodisíaco e capaz de curar ressacas.
O chef colombiano Dagoberto Torres ainda se lembra da sensação de quando entrou pela primeira vez em uma cevicheria, no centro de Bogotá. E do sabor dos caracóis, vôngoles e lulas. "Minha boca se encheu de água agora", diz. Tinha 18 anos e saía de uma festa que varou a madrugada, quando adentrou um lugar que pode ser resumido em três palavras: balcão, ceviche, cerveja.
Décadas depois, Torres se tornaria um dos responsáveis por disseminar o prato no Brasil. O chef chegou no país em 2007, com a intenção de trabalhar com Alex Atala. Quando conseguiu um lugar no badalado D.O.M., começou a experimentar com o ceviche — um dos que eram servidos por lá levava vieiras, limão, leite de coco e pimenta-de-cheiro.
Entre 2010 e 2016, esteve à frente do Suri, restaurante de cozinha latino-americana, famoso pela iguaria. Especializou-se tanto que até escreveu um livro, "Ceviche, do Pacífico para o mundo", em coautoria com a jornalista Patricia Moll. Desde 2018, lidera a Barú Marisqueria.
Cebiche, que passarinho é esse?
Talvez pela distância da costa pacífica, o ceviche levou um tempo para desembarcar no Brasil. O primeiro restaurante dedicado à gastronomia do Peru, e com ceviche no cardápio, do qual se tem notícia, surgiu e segue firme em Maceió. O Wanchako nasceu em 1996, após a chef Simone Bert se apaixonar por um peruano, José Luiz Bert — e, de carona, pela culinária daquele país.
Alagoana, Bert cresceu acompanhando o pai em pescarias e comendo tudo que viesse do mar. Mas seu encontro com o ceviche se deu com José Luiz e uma família que se dedica a restaurantes em Lima há pelo menos 50 anos. "Tive a oportunidade de ir para o Peru e me encantei. Minha sogra é exímia cozinheira, e todo dia eu comia algo diferente", lembra.
Mas trazer para o Brasil uma gastronomia diferente, com peixe cru no limão, não foi exatamente simples. "Passamos os três primeiros anos pensando em fechar. Muita gente não sabia nem onde ficava o Peru", diz Bert.
As pessoas olhavam o cardápio, e aqui escrevemos 'cebiche', com b, e perguntavam 'o que é cebiche? É aquele passarinho?", conta, em referência à ave de nome sibite, encontrada em partes do nordeste brasileiro.
Ela começou, então, um trabalho de marketing para que, aos poucos, o ceviche passasse a ser mais bem aceito.
Uma pitada de história
No Peru, os moches, civilização que viveu entre o início da era cristã e o século 8, já faziam a iguaria.
Eles saíam para pescar e, como ficavam muitas horas no mar, alimentavam-se do peixe, preparado com uma fruta cítrica chamada tumbo", conta a chef Marisabel Woodman.
Foi somente quando os espanhóis chegaram à América, trazendo limões e cebolas, que o ceviche tomou a forma mais conhecida hoje, ao ser preparado pelas escravas mouras que os acompanhavam. A etimologia viria do termo árabe "sibech", que quer dizer comida ácida.
Em São Paulo, o ceviche apareceu primeiro em cardápios de grandes restaurantes, que não se dedicavam especialmente à cozinha peruana ou latina. Em 1997, surgiu com lugar fixo no menu do chileno El Guatón.
A partir dos anos 2000 o prato se popularizou na cidade. Em 2005 nasceu o Rinconcito, do chef peruano Edgar Villar. Alocado inicialmente em um pequeno imóvel no centro e voltado para a comunidade de imigrantes, o Rinconcito conquistou o público e se tornou uma rede de dez casas.
Acostumados aos restaurantes japoneses (e, portanto, ao sashimi), os paulistanos não custaram muito a abraçar o ceviche. "São Paulo tem isso de conviver com muitas gastronomias diferentes, e as pessoas estão abertas a provar coisas novas", diz a chef do La Peruana Marisabel Woodman, nascida em Piura, costa norte do Peru.
Enquanto nos nossos vizinhos latino-americanos o ceviche é mais visto como um alimento diurno, com as cevicherias mais tradicionais fechando no final da tarde, em São Paulo o ramo ganhou ares de programa noturno. E de verão.
No calor, o restaurante lota; no frio, não. O ceviche é muito associado ao calor. A gente brinca que é que nem sorveteria"
Marisabel.
"Mais perdido que ovo em ceviche"
O ceviche tradicional peruano leva essencialmente peixe branco, limão, sal, pimenta, coentro e cebola roxa. A depender da região, a receita leva um caldo no qual se "cozinha" o peixe, o leite de tigre: basicamente uma mistura de temperos e de algum pescado cozido, tudo batido e coado. Acompanham batata doce e um tipo de milho específico do Peru.
Mas existem tantas variedades de ceviche quanto chefs e cozinheiros. Em países como a Colômbia, é comum que se faça com frutos do mar — nesse caso, eles são levemente cozidos em água antes de levarem sal, limão e pimenta.
O chef Dagoberto Torres procura apresentar diferentes versões do prato, sem limites. Pode entrar chipotle, castanha de caju, abacate. Tanto que, ao ouvir pela primeira vez a expressão peruana "mais perdido que ovo em ceviche", resolveu desafiar e acrescentar ovo ao prato.
Já fez parte do cardápio da Barú, por exemplo, o ceviche vegano, com cogumelos e ají amarillo.
Sabe por que eu tenho licença poética para fazer ceviche com o que eu quiser? Por que não sou peruano, não estou brigando pela tradição", brinca.
"Mas sou a pessoa mais tradicionalista com a comida colombiana, acho que faz bem ter esse lado também."
Manual do cevicheiro
- Peixe caro não significa peixe mais saboroso;
- Independentemente da receita do dia, tenha sempre à mão uma faca bem afiada e 3 ingredientes (limão, sal e pimenta);
- Enquanto estiver fazendo o mise en place, mantenha peixes e frutos do mar refrigerados, pois eles se deterioram rapidamente;
- Sempre coloque o sal primeiro, para que os peixes e frutos do mar o absorvam; o limão sela os pescados e impede que absorvam o sal;
- A bebida que melhor acompanha o ceviche é a cerveja.
Fonte: trecho adaptado do livro "Ceviche, do Pacífico para o mundo" (Senac), de Dagoberto Torres e Patrícia Moll
Fresco, fresquíssimo
Segundo a chef Marisabel, para se fazer um bom ceviche, é imprescindível que o pescado seja fresquíssimo. No Brasil, ela utiliza mais comumente a pescada do sul, também conhecida como maria-mole.
"Quando não tem, uso pescada, corvina, linguado, dourada, robalo", diz. "Também dá para fazer com salmão, mas nesse caso não coloco o leite de tigre clássico, faço algo mais asiático."
No Brasil, o prato também se adaptou aos ingredientes locais, como os peixes do Atlântico em vez dos do Pacífico e a pimenta dedo-de-moça no lugar do ají peruano.
Ceviche nada mais é que a técnica de cozinhar peixes e frutos do mar em limão ou outra fruta cítrica
A tilápia, peixe de água doce supercomum em São Paulo, não é recomendada pela chef do La Peruana por não absorver bem os sabores. Mas não há peixe proibido terminantemente, digamos. "No Peru, na serra, eles fazem ceviche até com truta", conta.
Poder, pode tudo que estiver bem fresco."
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