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Job atrasado? Café no Japão fiscaliza enrolões e multa quem procrastinar

Takuya Kawai, o dono (e supervisor de "enrolação") do Café Antiprocrastinação - Roberto Maxwell
Takuya Kawai, o dono (e supervisor de 'enrolação') do Café Antiprocrastinação Imagem: Roberto Maxwell

Roberto Maxwell

Colaboração para Nossa, de Tóquio (Japão)

22/08/2022 04h00

Da imensa janela de vidro, é possível ver as pessoas que dobram a esquina, do lado de fora. Elas olham para a fachada de tijolinhos vermelhos do térreo do pequeno prédio com curiosidade. Sem dúvidas, a máquina de escrever bem ao lado da porta chama a atenção. Mas são os cartazes azuis fixados nela e na janela que fazem as pessoas pararem.

Um café para você que está atrasado no prazo de entrega do seu texto", dizem.

É com essa proposta inusitada que o Manuscript Writing Cafe está fazendo fama em Tóquio e além.

Takuya Kawai, 52, é o idealizador do espaço, que fica no descoladíssimo bairro de Koenji, uma das maiores concentrações de artistas e trabalhadores criativos por metro quadrado da capital japonesa. Produtor de TV e de comerciais, ele se apaixonou pelo pequeno espaço onde criou o café. O lugar tem uma cara meio ocidental retrô e já tinha sido ocupado por uma relojoaria e por um restaurante italiano. "Achei interessante. Tinha o balcão, o acabamento com tijolos? Acabei alugando para usar como estúdio", conta.

Máquina de escrever chama atenção na decoração da entrada do Café Antiprocrastinação - Roberto Maxwell - Roberto Maxwell
Máquina de escrever chama atenção na decoração da entrada do Café Antiprocrastinação
Imagem: Roberto Maxwell

No espaço, Kawai recebia os colegas para filmagens e sessões fotográficas até que veio a pandemia e o isolamento. "Temos licença para funcionar como bar, também. Mas tudo ficou fechado. Ficamos sem ter como fazer dinheiro", relembra. Depois de alguns meses fechado, o proprietário teve a ideia de alugar o local para editores de vídeo trabalharem. "Aqui é pequeno e os editores precisam de mesa grande e de equipamentos. Acabou não dando muito certo", diz.

Um dia, Kawai começou uma thread no Twitter para coletar ideias do que fazer com o lugar. Segundo ele, não foram poucas as respostas sugerindo que ele focasse nos escritores. Tendo gostado do andar da conversa, Kawai continuou usando a rede social para desenvolver o conceito do espaço. Numa outra thread, um tweet saiu do controle.

Fiz vários tweets. Mas neste eu dizia brincando que iria cobrar, de forma bem enérgica, de quem não conseguisse cumprir os prazos", conta ele aos risos.

"Viralizou", prossegue. Assim chegou ao formato do que ganhou o apelido de Café Anti Procrastinação.

Fachada do Café Antiprocrastinação, em Tóquio - Roberto Maxwell - Roberto Maxwell
Fachada do Café Antiprocrastinação, em Tóquio
Imagem: Roberto Maxwell

Compromisso com a meta

Procrastinar é uma arte que, honestamente, eu não domino. Porém, tem vezes que uma matéria ou artigo acaba levando um pouco mais de tempo para sair. Por isso, de vez em quando, eu que costumo trabalhar em casa, me dou ao luxo de ir para um café com meu laptop velho de guerra. Acontece que esses espaços costumam ter música ambiente, o que de algum modo me distrai. Por isso, fiquei interessado em conhecer o Manuscript Writing Cafe.

"No começo, a gente também tinha música", diz Kawai. "Os clientes começaram a dizer que atrapalhava e eu tirei", continua.

O ambiente do Café Antiprocrastinação, à prova de distrações - Roberto Maxwell - Roberto Maxwell
O ambiente do Café Antiprocrastinação, à prova de distrações
Imagem: Roberto Maxwell

De fato, faz diferença. Por ter sido usado como estúdio, o ambiente tem um bom isolamento sonoro, essencial na barulhenta esquina em que fica localizado. Além disso, a luz é aconchegante na medida, sem provocar sono. Mesmo com boa parte dos assentos localizados em balcões, o espaço de trabalho também é confortável e bem pensado, com suporte ajustável para o notebook e para o telefone celular. Água, chás e café também ficam a disposição dos clientes, para consumo livre.

Como o espaço anda popular, Kawai recomenda reserva antecipada, o que eu acatei. Mas é na chegada ao café que o cliente recebe uma espécie de cartão no qual deve escrever, além das informações pessoais, o objetivo do dia: quanto tempo pretende ficar e quantos caracteres pretende escrever.

Também pude escolher a frequência com que queria ser cobrado. Optei por uma meta de 10 mil caracteres num tempo de duas horas. Pedi o nível de cobrança médio, a cada uma hora. O café cobra 240 ienes (cerca de R$ 10) por cada 30 minutos de uso. Uma bagatela para os padrões japoneses. No entanto, a coisa fica cara se você não cumprir a meta até o final do expediente, às 7 da noite. A multa pode chegar ao equivalente a R$ 190. Por isso, o proprietário não alivia.

Matchá, um cãozinho da raça dachshund, um dos guardiões do Café Antiprocrastinação - Roberto Maxwell - Roberto Maxwell
Matchá, um cãozinho da raça dachshund, um dos guardiões do Café Antiprocrastinação
Imagem: Roberto Maxwell

"Sou exigente, mesmo", diz Kawai, fazendo uma cara de malvado digna de vilões de filmes infantis, imagem que só é reforçada se levarmos em conta que ele segura no colo o Matchá, um cãozinho da raça dachshund. Apesar da persona cartunesca, ele faz o seu papel. Com pontualidade japonesa, o Kawai chegou 60 minutos depois de eu ter me sentado com uma plaquinha na mão perguntando sobre o andamento do trabalho. Disse a ele que estava na metade e ganhei um docinho.

Atrasados de toda sorte

O café abriu as portas em abril deste ano e já teve quase 600 clientes. Boa parte deles profissionais de criação que precisam de um empurrãozinho para colocar no papel seus livros e roteiros. Um deles ficou na memória de Kawai. "Era um rapaz que tinha que entregar um texto para um concurso. Ele chegou aqui faltando poucas horas para a data limite", relembra. A situação ficou tensa, mas o jovem deu conta.

Ele saiu daqui faltando poucos minutos para entregar o material no correio, mas conseguiu. Fiquei feliz de ter podido ajudá-lo", diz.

Decoração do Café Antiprocrastinação tem alma analógica - Roberto Maxwell - Roberto Maxwell
Decoração do Café Antiprocrastinação tem alma analógica
Imagem: Roberto Maxwell

Recentemente, um novo tipo de cliente bateu à sua porta. "São alunos de uma escola ginasial. Eles pediram para fazer o dever de casa aqui. Como são crianças, cobro mais barato. Hoje em dia, as pessoas têm muita distração em casa. Acho que é por isso que eles preferem fazer o dever de casa aqui", conta.

Meu horário está acabando e, apesar do texto estar fluindo bem, percebi que tinha sido um pouco otimista demais. Faltavam menos de cinco minutos e eu ainda tinha 200 caracteres pela frente. Fui digitando o mais rápido que podia, mas não teve jeito. Exatos 120 minutos depois, o Kawai estava do meu lado. "E aí?", perguntou ele. Disse que faltava muito pouco, menos de 20 caracteres. Ele me olhou com cara de suspense por alguns segundos, estendeu a mão e ficou aliviado e me deu mais um docinho. Ufa!

Detalhe do Café Antiprocrastinação - Roberto Maxwell - Roberto Maxwell
Detalhe do Café Antiprocrastinação
Imagem: Roberto Maxwell

"É a primeira vez que um repórter latino vem fazer matéria aqui", disse. "Já vieram ingleses, alemães... Só pessoas de países mais, digamos assim, fechados e sérios. Vocês são livres e espontâneos. Nunca imaginei que teriam interesse numa coisa dessas", diz ele, do nada.

Não consegui me segurar e dei uma gargalhada no meio do espaço que deveria ser silencioso. O Kawai não tem ideia do quanto o brasileiro manja de procrastinação e de brigar com os prazos. Não sabe o mercado que está perdendo, o inocente.