Erro em exame fez ciclista botar pé na estrada para pedalar 8 mil km
Lisandro Almeida sempre teve uma vida bem movimentada, a começar por sua trajetória profissional. Biólogo com mestrado em Oceanografia, o paulista de Osasco se mudou para Fernando de Noronha (PE) em 1994, aos 24 anos. Lá, formou-se instrutor de mergulho e passou a trabalhar em expedições científicas para as ilhas mais remotas do Brasil, como Atol das Rocas, Trindade, Abrolhos e o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, do qual foi um dos primeiros habitantes.
Na época da faculdade, Lisandro usava a bicicleta para ir e voltar do campus todos os dias, e a relação com o ciclismo se estreitou. Mas desde a mudança para a ilha, pedalar grandes distâncias ficara impraticável. Com cerca de 10 km de ponta a ponta, o pedal em Noronha é limitado.
A bicicleta ficou "encostada" em sua vida até ele se mudar para Biarritz, na França, onde vive metade do ano." Na Europa existe uma estrutura consolidada para o uso da bicicleta, o que motiva muito", disse.
Em 2018, o biólogo rompeu um ligamento jogando futebol e o fisioterapeuta recomendou o ciclismo para ajudar na recuperação. Lisandro e a bike voltaram a ser inseparáveis.
Diagnóstico errado
No ano seguinte, uma bateria de exames de rotina acusou uma anormalidade no fígado. O médico pediu mais exames para checar novamente os valores que não batiam com parâmetros saudáveis.
Até ter os resultados, Lisandro ficou com a pulga atrás da orelha.
Estava com 47 anos e não me faltavam exemplos de pessoas jovens morrendo ao meu redor. Pensava que talvez eu pudesse ser o próximo.
Com medo do pior, resolveu tentar realizar os ambiciosos sonhos que tinha traçado ainda criança. Alguns ele já havia conquistado, como conhecer as ilhas oceânicas brasileiras e ir para a Antártida. Faltava fazer um meio Ironman (a mais famosa prova de triatlo), atravessar vários países de bicicleta e subir as montanhas mais altas do planeta.
Saudável, afinal
Quando o resultado dos exames voltou, uma surpresa. O primeiro exame tinha sido corrompido, e ele estava saudável. Mas a vontade de viajar ficou.
O que aconteceu foi um erro, que pode ter sido do laboratório ou meu. Mas aquela situação me deu uma luz para aproveitar mais a vida.
Saiu dos 26 km² de Noronha para explorar o planeta, principalmente de bike.
Em 2020 pedalou parte do caminho de Santiago de Compostela partindo de Biarritz, em um total de 2.000 km.
No mesmo ano, decidiu mergulhar com alguns dos animais que ainda não tinha encontrado nos mares: baleias azuis, tubarões-martelo e orcas. Embarcou então para Galápagos e aproveitou a experiência para escalar quatro vulcões no Equador, incluindo o Cotopaxi. Mais um objetivo riscado da lista.
Em seguida se lançou na travessia dos Pirineus, pedalando de Barcelona, na Espanha, até Biarritz. Foram mais de 1.000 km pela cordilheira.
Em 2021, sem nunca ter praticado triatlo, se preparou para correr o sonhado "meio Ironman". Nadou 1,9 km, pedalou 90 km e correu 21 km em uma prova francesa, concluindo mais um plano.
Dos mares às montanhas
Atualmente, Lisandro celebra seus 50 anos de vida com o projeto Dos Mares Às Montanhas (@dosmaresasmontanhas), uma audaciosa viagem de bike por alguns países europeus.
Da França, ele partiu rumo à Itália, Eslovênia, Croácia e Grécia. O trajeto tem também um pano de fundo marítimo, já que se iniciou frente ao oceano Atlântico e passa pelos mares Mediterrâneo e Adriático. A viagem ainda está em curso, e Lisandro deve pedalar cerca de 8.000 quilômetros no total.
A jornada inicialmente teria 40 dias, mas dobrou de tamanho quando Lisandro conheceu Dona Rosalina, uma senhora de 74 anos, na Espanha. Sua história era quase inacreditável: há quase 40 anos, ela havia achado uma tampinha premiada em uma promoção de refrigerante e ganhado uma volta ao mundo em 80 dias.
Decidi que eu também viajaria 80 dias, para honrar o clássico de Júlio Verne e a viagem da Dona Rosalina. Ele foi de balão, ela ia de avião e eu, de bicicleta.
Exames OK, mas os óculos...
Para o ciclista, é importante conhecer seus limites e entender que aos 50 o corpo sente mais cansaço e demora mais para se recuperar. "É claro que hoje cubro menos asfalto do que faria quando era mais jovem, mas não estou com pressa".
Houve apenas uma ocasião em que a idade lhe pregou uma peça. "A partir dos 45 anos comecei a usar óculos, mas não uso para pedalar. Tive que trocar de pneu em um momento da viagem e não consegui ler a indicação da pressão correta da câmara. Em uma semana, o pneu furou cinco vezes. Quando fui arrumar usando os óculos, percebi que a pressão máxima era outra. A partir daí não furou mais".
Apesar de ter encontrado amigos em alguns momentos, ele gosta de viajar solo. "Estamos conectados o tempo inteiro e ficar sozinho é um luxo. Você se conhece, se valoriza e se torna bom companheiro de si mesmo".
Perdido
Lisandro usa diferentes aplicativos para guiar sua rota, mas já deu de cara com porteiras fechadas, barrancos intransponíveis e até uma ponte sendo mudada de lugar.
"Uma vez acabei caindo em uma autoestrada e não consegui mais sair. Tinha ônibus e caminhões passando do meu lado em alta velocidade, foi assustador. Para piorar, o pneu furou. Fiquei tão abalado que no dia seguinte nem pedalei, se não teria desistido".
Estado de espírito
Para bancar suas aventuras, Lisandro leva um estilo de vida simples. Em casa, se acostumou a viver com o básico e tem uma rotina de poucas regalias. Na estrada, busca opções de hospedagem e alimentação com bom custo-benefício, como campings, pousadas e restaurantes caseiros.
Também gastou parte de suas economias na viagem, sua grande comemoração de meio século de vida.
Sempre podemos correr atrás de dinheiro, mas idade e saúde são itens preciosos. Quero mostrar para todos que capacidade não tem a ver com idade, são antes de tudo escolhas e um estado de espírito.
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