Por que você vai ouvir falar (e muito!) da bottarga, a ova de peixe salgada
O consumo de ovas de peixes, de várias espécies, é comum em diversas partes do mundo. O próprio caviar, considerado um dos alimentos mais caros do planeta (no Brasil, uma latinha de 30 gramas chega fácil aos R$ 1.000), não passa de ovas do esturjão, peixe encontrado principalmente no Mar Cáspio, ao norte do Irã. São bolinhas negras, levemente salgadas, que têm sabor bastante pronunciado.
Ovas de outros peixes também aparecem bastante nas cozinhas orientais. Nos restaurantes japoneses de São Paulo, as mais comuns na finalização dos sushis são o massago, ovas miudinhas do peixe capelim, e o ikura, esferas mais carnudas, retiradas do salmão. Só que a bola da vez em termos de ovas tem mesmo sotaque italiano — a botarga (ou bottarga, com dois TT, em italiano), produzida com a ova da tainha.
Ao contrário das outras ovas, a bottarga não chega à mesa em forma de bolinhas, pois elas não são retiradas de dentro da membrana que as protege. Tampouco é servida fresca — a receita tradicional determina que a ova seja salgada e curada por dias, até adquirir sabor potente e muito particular.
O processo, ao que tudo indica, foi inventado em algum período entre os séculos XII e IX pelos fenícios, povo nômade que vivia navegando e começou a secar as ovas, ao sol, nas próprias embarcações. Depois se espalhou pela região do Mediterrâneo por obra dos árabes, até que os italianos se apropriaram dela. Na era pré-geladeira, era uma maneira eficiente de conservar as ovas e ainda obter uma iguaria saborosa, que se presta aos mais variados usos.
Fatiada, a bottarga in natura entra em saladas, finaliza crostinis e brusquetas, pratos à base de legumes, risotos e macarrão. Mas ela também pode ser ralada, o que a torna ainda mais versátil para a finalização de inúmeros preparos, especialmente os que envolvem peixe e frutos do mar.
O Brasil já produz botargas que não devem nada às italianas. Fundada em 2019, a Bottarga Gold, localizada em Itajaí (SC), produz 200 quilos por mês. Peças inteiras, granuladas ou raladas são distribuídas para empórios e restaurantes de vários estados.
Há ainda uma versão envolta em cera de abelha. "É um método antigo de conservação, que os espanhóis apreciam muito, e nós mantemos a tradição. A bottarga fica um pouquinho adocicada", explica Cassiano Fuck, um dos sócios.
Em sua fábrica, as ovas são salgadas por 2 a 3 horas com sal marinho, por ser livre de iodo — dessa forma, Cassiano garante que as bottargas fiquem claras por mais tempo, com o bonito tom laranja característico do produto. Depois de lavadas para remoção do excesso de sal, as ovas vão para estufas, com temperatura e umidade controladas, onde curam por quatro ou cinco dias.
O empresário aposta alto no aumento de consumo no Brasil. "A Sardenha, na Itália, tem 1,5 milhão de habitantes e consome 400 toneladas de bottarga por ano. Vem de lá o famoso spaghetti alla bottarga. Mas nós podemos ir mais longe."
Em Cananeia, no litoral sul de São Paulo, Paulo Hanae produz bottargas à italiana com as ovas mais bonitas, aquelas íntegras e sem imperfeições, e faz questão de seguir o método ancestral. Salgadas e prensadas por até 15 horas, para que fiquem compactadas e uniformes, as ovas são lavadas e secas ao sol, sob ação da brisa do mar e da maresia, por até uma semana. Algumas, porém, passam mais tempo secando para que fiquem bem desidratadas e sejam facilmente raladas.
Filho adotivo de uma família de japoneses, Hanae também lança mão da tradição oriental para aproveitar as ovas que já chegam às suas mãos rasgadas ou furadas. Já fora do saco protetor, elas viram shiokará. "Nesse processo, as ovas frescas são fermentadas com sal e saquê seco por até 10 dias. São as minhas preferidas", diz o produtor, que vende sua linha de ovas pelo e-commerce www.raizcaicara.com.br.
Japoneses também têm sua própria receita de ova de tainha curada — o karasumi. Embora tenha recebido o apelido de bottarga japonesa, o processo é bem diferente, como explica Rodolfo Vilar, do projeto A.Mar, em Ilhabela.
O karasumi leva somente sal e saquê, sem sol. Em temperatura amena e por diversos dias, a bebida é pincelada até atingir o ponto de cura" Rodolfo Vilar
Chef do restaurante Aizomê, em São Paulo, Telma Shiraishi produz o próprio karasumi. "No Japão, a receita muda conforme quem faz", explica. Sua versão começa com a salga. Após dois dias, começa a etapa de pincelar saquê diariamente. "Uso o comum, mas quem gosta do toque adocicado pode usar o mirim", ela diz.
A rotina dura de três semanas a dois meses, dependendo da textura desejada — quanto mais tempo de cura, mais desidratada e dura fica a ova.
Eu gosto de comer do jeito clássico, fatiado fininho, para comer com fatias de nabo, acompanhado de saquê ou cerveja. Mas o karasumi pode ser ralado em cima do prato como se fosse parmesão. É uma explosão de umami" Telma Shiraishi
O sucesso das ovas curadas é tamanho que já tem chef de cozinha inventando moda e arriscando receitas autorais. Tuca Mezzomo, chef do Charco, em São Paulo, produz as bottargas servidas na casa, segue a receita tradicional italiana, mas não se limita às ovas de tainha.
"Para ter certeza de que recebo produtos frescos, peço aos meus fornecedores que entreguem os peixes inteiros, com escamas, ovas e vísceras, como saem do mar. Uso as ovas de várias espécies para produzir bottarga e tenho trabalhado bastante com olhete e olho de boi", conta.
Na época da tainha, que vai de maio a julho, Mezzomo também faz karasumi — na sua receita, entra uma parcela de açúcar na etapa da salga. A ova curada acaba de entrar na composição de um novo prato do menu de entradas: uma ricota bem cremosa, com textura próxima ao requeijão, servida com palmito assado na brasa, karasumi, azeite, mix de ervas e flores. "Também ponho esses produtos no menu degustação, mas é preciso saber dosar, porque o sabor de mar é bem intenso."
Em Salvador, o chef Dante Bassi, do restaurante Manga, chegou ao ponto de fazer uma espécie de bottarga sem ova. A ideia, ele trouxe da temporada europeia, quando trabalhou no restaurante suíço Schauenstein, três estrelas no guia Michelin.
"Trabalhávamos com lagostas do mar da França, que chegavam vivas, e notei que elas tinham muito coral na cabeça, algo que só usávamos nos caldos de fundo", lembra o chef, que fez lá mesmo os primeiros testes de cura, seguindo a receita tradicional da bottarga.
Na cozinha do Manga, Bassi repetiu o processo com as lagostas locais — apesar de diferentes das europeias, ele explica, elas também trazem um coral escondido na cabeça, bem parecido em termos de tamanho e sabor.
Depois de removidos com pinça para que saiam íntegros, os corais passam por uma salga molhada, depois curam em sal e açúcar, desidratam na câmara fria e finalizam o processo numa rápida defumação. Ralados à mesa, à vista dos clientes, finalizam pratos como o tartar de lagosta com tutano assado. "O pessoal fica bem curioso. Para quem não sabe o que é bottarga, explico tudo desde o início."
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