Sem complexo de vira-lata: 'rebelados' elegem setembro o Mês da Cachaça
Sergio Crusco
Colaboração para Nossa
01/09/2022 04h00
O bartender Christopher Carijó andava meio incomodado - na verdade, fulo da vida - com a celebração, no Brasil, do Mês do Bourbon (National Bourbon Heritage Month), instituído nos Estados Unidos em 2007. Importada para cá, a data é uma oportunidade para a indústria estimular o consumo de bourbon, uísque de milho americano, com ofertas no grande varejo, eventos e ações de marketing em bares e restaurantes.
O 13 de setembro sempre foi Dia da Cachaça. Por que insistimos nessa mania de ser vira-lata e celebrar só o destilado dos gringos? Por que nós, profissionais de bar e indústria, damos tão pouca atenção ao que é nosso?" Carijó
Transformando revolta em ação, ele decidiu conclamar bartenders, produtores, especialistas, bares, restaurantes e cachaceiros a formar e a firmar um circuito anual que nos enfie na cabeça que setembro é tempo de cachaça.
O primeiro Mês da Cachaça em São Paulo vai contar com uma série de palestras e encontros de coquetelaria no restaurante Preto Cozinha (veja a programação abaixo), onde Carijó é chefe de bar. O evento também convida bartenders a preparar uma carta especial de coquetéis com o destilado de cana-de-açúcar nos estabelecimentos em que trabalham. Já estão comprometidos com o desafio os bartenders Laércio Zulu, Chris Machado, Filipe Brasil, Thiago Neto e Renan Tarantino, entre outros.
Pode parecer estranho que a cachaça, destilado mais consumido no Brasil, ainda esteja envolta em uma nuvem de desconhecimento e preconceito. Muitas barreiras foram quebradas com o advento da alta coquetelaria e hoje bartenders têm mais espaço e liberdade para criar coquetéis autorais e repaginar clássicos com cachaça.
Além da Caipirinha, drinques como Rabo de Galo, mistura de cachaça e vermute, ganharam as cartas de bares descolados, com bebidas selecionadas, ingredientes e preparos artesanais e cuidadosos.
Carijó, no entanto, acha que ainda é pouco:
Existe muita desinformação e um bocado de preguiça por parte de muitos bartenders. A coquetelaria com cachaça tem muitas variáveis, por causa da grande quantidade de madeiras usadas para envelhecer o líquido. Isso se torna um empecilho para o bartender que não quer estudar"
"Ter um Rabo de Galo na carta de coquetéis só pra constar é a muleta do preguiçoso, não quer dizer nada. Já tomei Rabo de Galo de boteco, que é um dedão de cachaça e um dedão de Cynar, melhor do que muito Rabo de Galo gourmetizado por aí", diz.
Para se ter ideia do tamanho do enguiço, basta saber que há mais de 30 madeiras no Brasil homologadas para o envelhecimento de cachaça — ainda contando com a branquinha, que não passa por madeira.
Além disso, uma multiplicidade de terroirs, estilos e formas de produção, da Amazônia ao Rio Grande do Sul. "Isso requer um estudo sensorial muito complexo para quem pretende usar a cachaça com maestria no bar", diz Carijó, dono de uma coleção de mais de 400 rótulos de caninha.
Ele exemplifica. Para drinques ácidos, você pode usar uma cachaça branca ou com passagem por madeiras leves, como o jequitibá. Coquetéis adocicados caem bem com cachaças envelhecidas em amburana. Se quer notas salgadas na mistura, bálsamo pode ser a pedida. Para receitas defumadas, ipê. Uma rara cachaça envelhecida em pau-brasil trará potência, corpo e adstringência ao trago.
"São muitos perfis de sabor em um destilado só, diferentemente de outras bebidas, cujo envelhecimento é feito só em carvalho. É possível reproduzir qualquer coquetel clássico usando a cachaça certa como base, de um drinque refrescante com água tônica ao Negroni."
Preconceito e evolução
Para além da dificuldade de entender e saber empregar a cachaça em diferentes tipos de coquetéis, o desafio do bartender passa pela rejeição que parte do público tem contra destilado nacional. "A repulsa ainda existe, infelizmente", diz Carijó. Mas há estratégias de persuasão:
Às vezes ofereço um coquetel com cachaça e proponho não cobrar, caso o cliente não goste. Ou mando para a mesa e só depois conto que é de cachaça. Raramente o drinque é devolvido"
Carijó chegou a enfrentar resistências internas, com os próprios donos ou gerentes de bares pedindo para ele maneirar na oferta de drinques com cachaça porque, "sei lá, não pega muito bem com o nosso público". Com cabeça dura e sorrateiramente, ele não maneirou: "Fui pelas beiradas, oferecendo receitas que não estavam na carta. Em pouco tempo, fiz a venda dos drinques de cachaça subir e consegui provar o contrário".
O maître e bartender Wagner Nascimento teve total liberdade para criar, no Bocada's Pizza, em São Paulo, um cardápio em que boa parte dos coquetéis tem base de cachaça. Mesmo estando na Barra Funda, bairro frequentado por gente jovem e de ideias supostamente mais arejadas, vez ou outra ele sentiu olhares desanimados ou ouviu interjeições de espanto - "ih, mas é cachaça?!"
Ainda há resistência por parte de algumas pessoas, gente que já chega torcendo o nariz. O preconceito certamente está relacionado ao baixo custo e ao fato de ser um destilado consumido em áreas periféricas" Wagner Nascimento
"O lado positivo disso, para quem batalha pela cachaça, é existir um grande grupo de pessoas a serem atingidas pelo que ela tem a oferecer", diz Wagner, embaixador da Cachaça Arbórea.
Para o bartender Derivan de Souza, vencer o preconceito é questão de tempo — não muito, ele acredita. "Estou no mundo da cachaça há mais de 40 anos e posso dizer que avançamos demais, hoje temos inúmeros produtos de qualidade absurda. Há curiosidade por parte do público, não apenas no Brasil, mas internacionalmente. Sempre recebo estrangeiros que já chegam ao bar pedindo: 'Hoje quero beber cachaça'", ele conta.
Mestre Derivan, do alto de cinco décadas de bar, é mais um dos que empunham a bandeira da cachaça mais com ações afirmativas do que com conversa. O Concurso Rabo de Galo, promovido anualmente por ele, propõe aos competidores recriar o clássico de botequim com os mais variados ingredientes — vermutes, aperitivos, bitters —, unindo profissionais, bares, restaurantes e produtores na disputa.
O concurso tem metas bem definidas. Além de difundir o uso da cachaça na boa coquetelaria brasileira, Derivan quer ver o Rabo de Galo incluído na lista da Associação Internacional de Bartenders (IBA), que compila receitas clássicas de várias eras.
A Caipirinha já está na lista e mais um passo importante para o reconhecimento internacional do Rabo de Galo será dado em abril de 2023, com a primeira etapa europeia do concurso, a ser realizada em Portugal.
PROGRAMAÇÃO DO MÊS DA CACHAÇA
Preto Convida - Chris Carijó recebe bartenders e especialistas para noites de coquetelaria com cachaça
Dia 7/9, às 20h - os sommeliers de cachaça Isadora Fornari e Mauricio Maia.
Dia 14/9, às 20h - os bartenders David Barreiro, embaixador da Cachaça Yaguara, e Alysson Antenor, embaixador de Jägermeister.
Dia 21/9, às 20h - os bartenders Raul Dias, sócio do Gin Curia e chefe de bar do Tulum, e Renan Tarantino, chefe de bar do Sky Hall.
Dia 28/9, às 20h - As bartenders Chris Machado, do Atto Restaurante, e Juliane Paixão, do Lido Amici di Amici.
30/9, às 19h - Milton Lima, presidente da Cúpula da Cachaça e embaixador da Cachaça Pindorama.
Projeto Ensina - palestras e debates sobre cachaça
Dia 5/9, às 19h - Felipe Jannuzzi, especialista e criador do site Mapa da Chacaça, fala sobre a despolarização da cachaça.
Dia 12/9, às 19h - Illan Oliveira, diretor da Solution Distribuidora, fala sobre a evolução do mercado de cachaça.
Dia 19/9, às 19h - Chis Carijó ministra uma palestra sobre como montar cartas de cachaça em bares e restaurantes.
Dia 26/9, às 19h - Aula sobre coquetelaria com cachaça com os bartenders Filipe Brasil, Laércio Zulu e Thiago Nego.
Bares participantes
Durante o mês de setembro, bares e restaurantes da cidade criarão uma pequena carta de coquetéis à base de cachaça. Entre os participantes de uma lista que ainda deve crescer, estão confirmados Sky Hall, Tulum, bares da rede Cão Véio, Pensão Bar, Flora Bar, Lido Amici di Amici e bares chefiados por Laércio Zulu, como Boteco São Bento e São Conrado Bar. E o Preto Cozinha, naturalmente.
O Preto Cozinha fica na Rua Fradique Coutinho, 276, em Pinheiros. Não é preciso se inscrever ou fazer reservas para as noites de palestras e coquetelaria. Basta chegar na hora.