Independência? Não na mesa! Os pratos brasileiros com influência portuguesa
Já se vão 200 anos desde que o Brasil se tornou independente de Portugal. Mas nem tanta coisa assim mudou nos últimos dois séculos. A estrutura social do país se transformou pouco nesse tempo. E muito da influência portuguesa, na hierarquia social e nos hábitos culturais, se manteve. Também na nossa gastronomia.
Durante os séculos que o Brasil esteve sob o domínio político e econômico do país europeu, nossa dieta foi profundamente transformada. Não apenas pelo claro intercâmbio de alimentos (nós herdamos muitas frutas, o arroz; eles levaram a batata, o milho), mas sobretudo pela imposição do gosto português na nossa alimentação.
Em todo o tempo que o Brasil foi colônia, as cozinhas regionais foram ignoradas, principalmente as de matrizes indígena e africana. Muitos alimentos foram trazidos para alimentar os portugueses, que passaram a cultivar o que já plantavam em seu país — e o que era possível se adaptar ao clima tropical, claro.
A partir daí, a presença dos colonizadores transformou completamente a dieta dos povos nativos: do refogado à fritura, dos cozidos a uma rica e vasta doçaria, o brasileiro nunca mais comeu da mesma forma.
Com os muitos fluxos migratórios estabelecidos desde os tempos que o Rio de Janeiro se transformou em capital da colônia portuguesa, passamos a comer cada vez mais como eles.
Mas nem sempre identificamos toda a influência que está sobre a nossa mesa. "É muito difícil encontrar um prato na cozinha brasileira que a matriz não seja portuguesa ou não tenha nenhuma influência", como afirmou à Nossa o chef português Vitor Sobral, da Tasca da Esquina, em São Paulo.
O escritor e pesquisador gastronômico Virgílio Nogueira Gomes concorda. "A herança portuguesa está muito latente na culinária que se faz no Brasil, das sobremesas às sopas", esclarece ele, que é autor do livro "À Portuguesa - Receitas em livros estrangeiros até 1900".
Trata-se, como diz o pesquisador, de uma "educação do gosto", em que as pessoas vão fazendo comparação com produtos novos, com novas formas de fazer uma receita, buscar produtos substitutos.
É natural que os primeiros portugueses quisessem fazer uma cozinha o mais idêntica possível à que eles estavam habituados" Virgílio Nogueira Gomes
Para ele, há uma certa "resistência no Brasil a assumir que certas coisas são de origem portuguesa". Mas trata-se, segundo o pesquisador, de estudar a história da alimentação — sem juízos de valor.
Como uma forma de conhecimento viva, a gastronomia perpassa uma perspectiva cultural de evolução das receitas, "que se adaptam, se moldam e evoluem, a depender do contexto", segundo ele.
É uma questão de entender a história.
Quando escrevo que em Portugal já se servia arroz com feijão no século 14, não quero ir lá colocar a bandeira portuguesa em cima de nenhuma panela. Ou não valorizar o baião de dois. Mas sim entender os movimentos por trás de sua criação"
A seguir, Nogueira Gomes nos ajuda a entender até onde esta influência está presente, do acarajé ao arroz e feijão, passando pelo consumo de açúcar.
Arroz e feijão
Em Portugal, o arroz é quase tão presente nas refeições quanto no Brasil. Mas no país europeu, ele é consumido de maneiras muito mais variadas: do arroz de pato aos arrozes caldosos, bem molhados, aos feitos no forno. Mas esse apreço dos portugueses pelo grão de origem asiática ajuda a explicar nossa paixão pelo arroz branquinho de todos os dias.
A combinação com o feijão vem de antes dos portugueses chegarem ao Brasil. "Em Portugal, já se comia arroz com feijão no século 14", ele explica. Ainda hoje, é comum encontrar arroz de feijão, um tipo de arroz mais meloso feito com alguns grãos da leguminosa.
O baião de dois é uma resposta a isto, ainda que tenha evoluído e se constituído como receita típica e tradicional no Brasil. Tanto que hoje já existe o baião de dez, à medida que outros ingredientes foram incorporados à receita" Virgílio Nogueira Gomes
Laranja no copo
Até mesmo aquele suco recém-extraído de laranjas docinhas que tomamos pela manhã tem o dedo dos portugueses. Isso porque, como explica Nogueira Gomes, a partir do século 18, os portugueses ficaram conhecidos por distribuir na Europa a laranja doce — até então, a laranja dissipada e consumida era a azeda.
"Tudo o que levava laranja passou a ser português ou à portuguesa, especialmente nos doces, muitos deles franceses", diz. Na Europa, por isso, há dez países nos quais a laranja se chama 'portucal' ou alguma palavra semelhante ao nome do país. Dos Açores para o Algarve, depois para a Europa e para o Brasil, a laranja que tomamos chegou pela mão dos portugueses.
Do acarajé às coxinhas
Foram os portugueses também que introduziram a técnica da fritura — o método de mergulhar um alimento em gordura fumegante — em muitos países onde chegaram, da África ao Japão (sim, a tempura tem origem portuguesa). Também no Brasil, claro.
Os croquetes são muito tradicionais em Portugal, assim como os rissoles (chamados por eles de rissóis), o que indica que a nossa mania de comer salgadinhos fritos nas festas e aniversários veio dos hábitos lusitanos.
Claro, a coxinha surgiu no Brasil, mas seria improvável sem que tivéssemos conhecido os salgados portugueses. "Fico sempre perplexo quando dizem que o acarajé é um prato africano", diz Nogueira Gomes. "Na África não existia fritura. Os africanos podem ter os ingredientes e a receita, mas a técnica de fritar é portuguesa", explica. Isso significa que o acarajé é fruto da miscigenação que, essa sim, é 100% brasileira.
Pão nosso
Francês, que nada. Nosso pão é mais português do que pensamos. Não apenas na receita (farinha, água, sal e fermento, como no "papo-seco", tradicional em Portugal), mas principalmente na cultura que existe por trás dele, com a ideia das padarias que se alastraram pelo Brasil como um reflexo de um hábito português há muito já estabelecido.
Impressionante que um país tão pequeno faça tantas variedades de pães, que é consumido ainda mais que no Brasil. Em Portugal, há sanduíches feitos apenas com um filé de porco ou frango empanado e até uma versão em que o pão leva como recheio um rissoles (!).
O pão é presente no café, no almoço e no jantar, sempre à mesa. Também porque se tornou um alimento barato e versátil. Mesmo duro serve como base de preparos como a açorda (espécie de sopa típica da região do Alentejo português), pudins, para empanar carnes ou até em sobremesas, como a rabanada, uma herança que os portugueses introduziram no Brasil.
Doce mundo doce
O Brasil se tornou um grande produtor de cana-de-açúcar a partir das primeiras mudas trazidas pelos portugueses direto da ilha da Madeira, um entreposto importante para a sua produção. Os engenhos instalados em Pernambuco ajudaram na criação de uma doçaria local.
Depois, a chegada da Família Real ao Brasil veio desenvolver um tipo de doçaria que ainda não havia no país, uma mais elitista e delicada, como a que se encontra hoje em Pelotas, por exemplo, que tem uma raíz muito portuguesa" Virgílio Nogueira Gomes.
A partir daí, o açúcar foi usado não só para reproduzir receitas (como o quindim, uma adaptação das brisas de lis, uma receita original de Leiria, mas que leva amêndoas, então impossíveis de encontrar no Brasil) como para criar novas, como é o caso da umbuzada, um tipo de marmelada que usava a fruta local com a técnica aprendida com os portugueses.
A goiabada, tão propagada no país, também vem dessa influência. A verdade é que, tal como os portugueses, nosso gosto foi adaptado a sabores bem doces, feitos à base de uma certa ostentação do açúcar.
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