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Independência? Não na mesa! Os pratos brasileiros com influência portuguesa

O quindim teria nascido por aqui como adaptação das brisas de lis, receita original de Leiria, em Portugal, que leva amêndoas - Thiago Santos/Getty Images/iStockphoto
O quindim teria nascido por aqui como adaptação das brisas de lis, receita original de Leiria, em Portugal, que leva amêndoas
Imagem: Thiago Santos/Getty Images/iStockphoto

Rafael Tonon

Colaboração para Nossa

07/09/2022 04h00

Já se vão 200 anos desde que o Brasil se tornou independente de Portugal. Mas nem tanta coisa assim mudou nos últimos dois séculos. A estrutura social do país se transformou pouco nesse tempo. E muito da influência portuguesa, na hierarquia social e nos hábitos culturais, se manteve. Também na nossa gastronomia.

Durante os séculos que o Brasil esteve sob o domínio político e econômico do país europeu, nossa dieta foi profundamente transformada. Não apenas pelo claro intercâmbio de alimentos (nós herdamos muitas frutas, o arroz; eles levaram a batata, o milho), mas sobretudo pela imposição do gosto português na nossa alimentação.

Em todo o tempo que o Brasil foi colônia, as cozinhas regionais foram ignoradas, principalmente as de matrizes indígena e africana. Muitos alimentos foram trazidos para alimentar os portugueses, que passaram a cultivar o que já plantavam em seu país — e o que era possível se adaptar ao clima tropical, claro.

A partir daí, a presença dos colonizadores transformou completamente a dieta dos povos nativos: do refogado à fritura, dos cozidos a uma rica e vasta doçaria, o brasileiro nunca mais comeu da mesma forma.

Quadro 'Um jantar brasileiro', do pintor francês Jean-Baptiste Debret, que morou no Brasil de 1816 a 1831  - Domínio Público - Domínio Público
Quadro 'Um jantar brasileiro', do pintor francês Jean-Baptiste Debret, que morou no Brasil de 1816 a 1831
Imagem: Domínio Público

Com os muitos fluxos migratórios estabelecidos desde os tempos que o Rio de Janeiro se transformou em capital da colônia portuguesa, passamos a comer cada vez mais como eles.

Mas nem sempre identificamos toda a influência que está sobre a nossa mesa. "É muito difícil encontrar um prato na cozinha brasileira que a matriz não seja portuguesa ou não tenha nenhuma influência", como afirmou à Nossa o chef português Vitor Sobral, da Tasca da Esquina, em São Paulo.

O escritor e pesquisador gastronômico Virgílio Nogueira Gomes concorda. "A herança portuguesa está muito latente na culinária que se faz no Brasil, das sobremesas às sopas", esclarece ele, que é autor do livro "À Portuguesa - Receitas em livros estrangeiros até 1900".

Trata-se, como diz o pesquisador, de uma "educação do gosto", em que as pessoas vão fazendo comparação com produtos novos, com novas formas de fazer uma receita, buscar produtos substitutos.

É natural que os primeiros portugueses quisessem fazer uma cozinha o mais idêntica possível à que eles estavam habituados" Virgílio Nogueira Gomes

Açougue colonial retratado por Debret - Domínio Público - Domínio Público
Açougue colonial retratado por Debret
Imagem: Domínio Público

Para ele, há uma certa "resistência no Brasil a assumir que certas coisas são de origem portuguesa". Mas trata-se, segundo o pesquisador, de estudar a história da alimentação — sem juízos de valor.

Como uma forma de conhecimento viva, a gastronomia perpassa uma perspectiva cultural de evolução das receitas, "que se adaptam, se moldam e evoluem, a depender do contexto", segundo ele.

É uma questão de entender a história.

Quando escrevo que em Portugal já se servia arroz com feijão no século 14, não quero ir lá colocar a bandeira portuguesa em cima de nenhuma panela. Ou não valorizar o baião de dois. Mas sim entender os movimentos por trás de sua criação"

A seguir, Nogueira Gomes nos ajuda a entender até onde esta influência está presente, do acarajé ao arroz e feijão, passando pelo consumo de açúcar.

Arroz e feijão

Em Portugal, o arroz é quase tão presente nas refeições quanto no Brasil. Mas no país europeu, ele é consumido de maneiras muito mais variadas: do arroz de pato aos arrozes caldosos, bem molhados, aos feitos no forno. Mas esse apreço dos portugueses pelo grão de origem asiática ajuda a explicar nossa paixão pelo arroz branquinho de todos os dias.

Feijão e arroz: tradição brasileira herdada dos hábitos portugueses - Jonne Roriz/Estadão Conteúdo/AE - Jonne Roriz/Estadão Conteúdo/AE
A dupla feijão e arroz: tradição brasileira herdada dos hábitos portugueses
Imagem: Jonne Roriz/Estadão Conteúdo/AE

A combinação com o feijão vem de antes dos portugueses chegarem ao Brasil. "Em Portugal, já se comia arroz com feijão no século 14", ele explica. Ainda hoje, é comum encontrar arroz de feijão, um tipo de arroz mais meloso feito com alguns grãos da leguminosa.

O baião de dois é uma resposta a isto, ainda que tenha evoluído e se constituído como receita típica e tradicional no Brasil. Tanto que hoje já existe o baião de dez, à medida que outros ingredientes foram incorporados à receita" Virgílio Nogueira Gomes

Laranja no copo

Até mesmo aquele suco recém-extraído de laranjas docinhas que tomamos pela manhã tem o dedo dos portugueses. Isso porque, como explica Nogueira Gomes, a partir do século 18, os portugueses ficaram conhecidos por distribuir na Europa a laranja doce — até então, a laranja dissipada e consumida era a azeda.

"Tudo o que levava laranja passou a ser português ou à portuguesa, especialmente nos doces, muitos deles franceses", diz. Na Europa, por isso, há dez países nos quais a laranja se chama 'portucal' ou alguma palavra semelhante ao nome do país. Dos Açores para o Algarve, depois para a Europa e para o Brasil, a laranja que tomamos chegou pela mão dos portugueses.

Do acarajé às coxinhas

Foram os portugueses também que introduziram a técnica da fritura — o método de mergulhar um alimento em gordura fumegante — em muitos países onde chegaram, da África ao Japão (sim, a tempura tem origem portuguesa). Também no Brasil, claro.

Os croquetes são muito tradicionais em Portugal, assim como os rissoles (chamados por eles de rissóis), o que indica que a nossa mania de comer salgadinhos fritos nas festas e aniversários veio dos hábitos lusitanos.

Bolinho de bacalhau: o precursor da brasileiríssima coxinha? - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Bolinho de bacalhau: o precursor da brasileiríssima coxinha?
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Claro, a coxinha surgiu no Brasil, mas seria improvável sem que tivéssemos conhecido os salgados portugueses. "Fico sempre perplexo quando dizem que o acarajé é um prato africano", diz Nogueira Gomes. "Na África não existia fritura. Os africanos podem ter os ingredientes e a receita, mas a técnica de fritar é portuguesa", explica. Isso significa que o acarajé é fruto da miscigenação que, essa sim, é 100% brasileira.

Pão nosso

Francês, que nada. Nosso pão é mais português do que pensamos. Não apenas na receita (farinha, água, sal e fermento, como no "papo-seco", tradicional em Portugal), mas principalmente na cultura que existe por trás dele, com a ideia das padarias que se alastraram pelo Brasil como um reflexo de um hábito português há muito já estabelecido.

O comércio de pães no Brasil Colônia retratado por Debret no quadro ?Padaria? - Domínio Público - Domínio Público
O comércio de pães no Brasil Colônia retratado por Debret no quadro "Padaria"
Imagem: Domínio Público

Impressionante que um país tão pequeno faça tantas variedades de pães, que é consumido ainda mais que no Brasil. Em Portugal, há sanduíches feitos apenas com um filé de porco ou frango empanado e até uma versão em que o pão leva como recheio um rissoles (!).

O pão é presente no café, no almoço e no jantar, sempre à mesa. Também porque se tornou um alimento barato e versátil. Mesmo duro serve como base de preparos como a açorda (espécie de sopa típica da região do Alentejo português), pudins, para empanar carnes ou até em sobremesas, como a rabanada, uma herança que os portugueses introduziram no Brasil.

Doce mundo doce

O Brasil se tornou um grande produtor de cana-de-açúcar a partir das primeiras mudas trazidas pelos portugueses direto da ilha da Madeira, um entreposto importante para a sua produção. Os engenhos instalados em Pernambuco ajudaram na criação de uma doçaria local.

Depois, a chegada da Família Real ao Brasil veio desenvolver um tipo de doçaria que ainda não havia no país, uma mais elitista e delicada, como a que se encontra hoje em Pelotas, por exemplo, que tem uma raíz muito portuguesa" Virgílio Nogueira Gomes.

Quindim: uma adaptação nacional a receita portuguesa - Getty Images/iStockphotos - Getty Images/iStockphotos
Quindim: uma adaptação nacional a receita portuguesa
Imagem: Getty Images/iStockphotos

A partir daí, o açúcar foi usado não só para reproduzir receitas (como o quindim, uma adaptação das brisas de lis, uma receita original de Leiria, mas que leva amêndoas, então impossíveis de encontrar no Brasil) como para criar novas, como é o caso da umbuzada, um tipo de marmelada que usava a fruta local com a técnica aprendida com os portugueses.

A goiabada, tão propagada no país, também vem dessa influência. A verdade é que, tal como os portugueses, nosso gosto foi adaptado a sabores bem doces, feitos à base de uma certa ostentação do açúcar.