Como foi o terremoto que destruiu Lisboa em 1755? Museu simula a tragédia
Era dia 1 de novembro de 1755. Lisboa, uma cidade profundamente católica, celebrava uma de suas datas mais importantes, o Dia de Todos os Santos. Na época, quando a Inquisição portuguesa ainda era muito importante, as igrejas eram esplendorosas:
"Elas eram escuras por dentro, por isso, mesmo durante o dia, haviam lustres gigantescos, com centenas de velas acesas, muitas vezes encaixadas em modelos de madeiras. Havia, ainda, cortinados e almofadas em veludo", descreve o historiador e escritor André Canhoto Costa. "Se alguém quisesse incendiar, parece o ambiente perfeito". E foi o que aconteceu. Por volta das 9h30, a cidade tremeu e, depois, ardeu. E, desde então, Lisboa nunca mais foi a mesma.
A capital de Portugal passou, naquele dia santo de 1755, por uma sequência de tragédias: um terremoto, um tsunami e, por fim, um grande incêndio. O fenômeno mudou a história da metrópole e é relembrado no Quake, uma experiência imersiva inaugurada em Lisboa em abril de 2022, que narra o que aconteceu naquele fatídico Dia de Todos os Santos.
Foi um acontecimento com um peso histórico incontornável, que mudou totalmente o rumo da cidade de Lisboa, dos seus habitantes e a forma como passaram a ver o mundo" Ricardo Clemente, cofundador do Quake
"Com este fenômeno, a cidade renasceu, reinventou-se, tornando-se outra, tanto em termos de topografia como de sociedade", completa Clemente.
Antes do terremoto
Segundo o site de buscas de hotéis e voos JetCost, a capital de Portugal foi o destino mais procurado em 2022 para as férias de verão europeu, em agosto. A arquitetura é um de seus principais atrativos: os prédios com telhados alaranjados, com fachadas coloridas ou revestidas de azulejos, pequenas varandas e varais, com roupas a secar pelo vento.
Porém, esta é uma Lisboa que nasceu depois do terremoto.
Em 1755, a cidade portuguesa era a quarta mais importante da Europa, atrás de Londres, Paris e Nápoles. Ela era a capital de um império colonial mundial, com territórios na África, Ásia e América Latina, como o Brasil. Por influência de suas colônias, a arquitetura de Lisboa era eclética, bastante inspirada na arquitetura islâmica e do Oriente.
"Seria muito parecida com Veneza. Muito colorida, ornamentada. Esfuziante. Há muitos registros do encantamento dos estrangeiros que chegavam à cidade de barco", diz o historiador André Canhoto Costa.
Ainda assim, as ruas lisboetas eram medievais, semelhantes às de Alfama, bairro das casas de fado. Elas eram estreitas, serpenteavam, com prédios muito próximos uns dos outros. E eram cheias de pessoas de várias partes do mundo, comerciantes com produtos exóticos das colônias.
Portugual, naquela época, era uma espécie de Babilônia da Europa" André Canhoto Costa, historiador
Tríade de tragédias
"Era um ruído estranho e assustador embaixo da terra, como o estrondo distante e oco de um trovão". Foi como o reverendo Charles Davy, um dos sobreviventes do terremoto de Lisboa, descreveu o sismo que atingiu a cidade por volta de sete minutos.
Na época, a sismologia estava longe de ser uma ciência como a conhecemos hoje em dia, mas estima-se que o abalo foi de 7 ou 8 na Escala Richter. A título de comparação, o terremoto de Fukushima, de 2011, foi de grau 9,1.
Quando o sismo cessou, os incêndios começaram. "Na Europa do século 18, o fogo era a principal fonte de energia. Assim, havia, em toda casa, um deles a arder", pontua André Canhoto Costa. Roupas, joias, móveis deram combustível necessário para que focos de incêndio começassem a surgir pela paisagem.
A população, assustada, fugiu para o Terreiro do Paço, onde atualmente fica a Praça do Comércio, ao pé do Rio Tejo. Ali, elas achavam que estavam seguras, até que as águas começaram a recuar.
"Há registros de que navios foram descobertos, assim como ruínas, e que as pessoas podiam até mesmo atravessar para o outro lado, Almada, a pé", fala o especialista. Era o mar se preparando para se revoltar.
Por volta de 1h30 depois do abalo, uma massa de água de pelo menos 5 metros de altura voltou-se contra Lisboa. O tsunami pode ter invadido por volta de 700 metros adentro da cidade. E, em vez de apagar os incêndios, a grande onda trouxe destroços e alimentou o fogo. Cartas da época dão conta que a cidade ardeu por uma semana.
O terremoto, em si, não causou tanta destruição. O tsunami foi o que mais matou pessoas: de 10 mil a 40 mil pessoas morreram por conta da tragédia — Lisboa tinha 200 mil habitantes na época. O incêndio, por sua vez, foi o que trouxe mais danos estruturais e financeiros à cidade.
Os principais prédios da monarquia foram destruídos, incluindo o Palácio Real, que ficava no Terreiro do Paço. A Alfândega e seus registros, além dos armazéns, o centro econômico do governo, também vieram ao chão. Assim como o Palácio da Inquisição e outros prédios que constituíam o coração religioso da capital. As riquezas do centro do império derreteram junto com o fogo.
Por mais que fosse muito rica, no século 18, Lisboa já vinha perdendo o comboio em relação a outras metrópoles da Europa. O impacto financeiro do terremoto contribuiu para o atraso.
Se pensarmos na quantidade de ouro e prata que derreteram no incêndio, é como se a Coroa, que recolhia um quinto do ouro extraído no Brasil, nunca tivesse trazido o metal para Portugal" André Canhoto Costa, historiador
Uma nova Lisboa
No dia seguinte à tragédia, Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido como Marquês de Pombal, começaria a escrever a sua história como uma espécie de herói de Lisboa. Ele criou um plano de Proteção Civil dos sobreviventes da tragédia, com estratégias para abrigar pessoas sem moradia, evitar a fome e para lidar com cadáveres, a fim de evitar uma epidemia de Peste Bubônica. E, no fim de 1755, ele já chefiava uma força-tarefa para reconstruir Lisboa.
Foram propostos alguns planos para a cidade pós-terremoto, incluindo a possibilidade de abandonar a cidade e reconstruí-la em outro território, como a então vizinha Belém. O escolhido foi o do engenheiro mor Manuel da Maia, que previa a planificação da região da Baixa e reorganização da planta urbana.
Foi assim que nasceu a Lisboa como a conhecemos hoje. O plano detalhava a construção de edifícios com uma tecnologia anti-sísmica, batizada de gaiola pombalina. Eles tinham até quatro andares, com espaços para lojas e varandas nos primeiros andares.
Ao contrário da cidade eclética pré-terremoto, todas as casas, mesmo as dos nobres, deveriam seguir a mesma tipologia. A decoração mais complexa ficava restrita aos portais.
Em vez do Terreiro do Pahço, o centro da cidade se tornou a Praça do Comércio — hoje principal cartão postal de Lisboa. Houve, também, a implementação de um sistema de esgotos mais moderno para atender a população. As ruas da Baixa se tornaram mais largas, para melhorar a iluminação e a ventilação.
"Há uma anedota que diz que perguntaram para Marquês do Pombal qual seria a necessidade de avenidas tão largas, o que ele respondeu: 'Um dia, elas serão pequenas'", comenta André Canhoto Costa.
Mudança cultural
O terremoto não mudou a sociedade lisboeta apenas arquitetonicamente. A sociedade profundamente religiosa começou a se perguntar se Lisboa havia sido punida por Deus.
Havia a ideia de que o terreno era amaldiçoado e, por isso, muitas pessoas emigraram da capital" André Canhoto Costa
O fenômeno também adiantou um embate entre a religiosidade e os estudos científicos.
A tragédia foi um assunto recorrente na Europa nos anos seguintes. E, por isso, os estudos sobre sismologia foram aprofundados. Além disso, o terremoto inspirou Immanuel Kant a escrever três diferentes textos sobre o desastre, além de fazer Voltaire escrever o "Poema sobre o Desastre de Lisboa". "As pessoas se perguntavam se a natureza era sagrada, por que ela havia tratado elas tão mal?", diz Canhoto Costa.
O terremoto traumatizou a população. O rei D. José I sobreviveu à tragédia porque estava em Belém, próxima a Lisboa. Com a destruição do palácio real, a corte precisou morar em um complexo de tendas na Ajuda, batizado como Real Barraca da Ajuda, em Lisboa. Ele nunca mais quis morar em um edifício de "pedra e cal". Ironicamente, o lugar seria destruído por um incêndio em 1794, fazendo com que a família real fosse residir no Palácio de Queluz.
"Espere o inesperado"
Há vestígios e histórias relacionadas ao terremoto de 1755 por toda Lisboa. As ruínas do Convento do Carmo, situado em um dos bairros mais turísticos da cidade, Chiado, é um lembrete do desastre. Porém, se quiser informações mais detalhadas — e se sentir transportado ao que aconteceu naquele Dia de Todos os Santos — o novo museu Quake pode ser uma boa opção de passeio.
O complexo de 1.800 metros quadrados está localizado em Belém. A atração possui oito salas, incluindo um simulador que pretende levar os visitantes diretamente para o dia do terremoto.
Adequada para crianças, a experiência busca explicar quais são as causas de um abalo sísmico, ambientalizar as pessoas na Lisboa do século 18 antes e após os incêndios, e detalhar quais foram as medidas tomadas por Marquês de Pombal para reconstruir a cidade.
O projeto foi criado em 2015 por Ricardo Clemente e Maria Marques e teve um investimento de 8 milhões de euros (cerca de R$ 41 milhões) para sair do papel. Para ter um bom embasamento científico, os fundadores contaram com uma equipe formada pelos professores sismólogos Luís Matias e Susana Custódio, da Faculdade de Ciências de Lisboa, e o historiador André Canhoto Costa.
A visita ao complexo leva por volta de 1h40 e é feita em grupos de até 23 pessoas. Cada visitante recebe uma pulseira que permite que ela interaja com a atração, receba mais informações e faça fotos dentro dos cenários da experiência imersiva. O material fica disponível por e-mail após a visita sem qualquer custo adicional.
Porém, mais do que explicar como foi a tragédia, Quake também se dedica a conscientizar sobre a possibilidade de acontecer um novo abalo. Por isso, seu slogan é "Espere o inesperado".
A ocorrência de um novo grande terremoto com consequências em Portugal não é uma questão de 'se', mas 'quando'" Ricardo Clemente
O empresário não está sendo alarmista. O país situa-se na Placa Euroasiática, limitada ao sul pela falha ativa Açores-Gilbraltar, e a oeste do continente localiza-se a falha dorsal do Oceano Atlântico. "Pela dimensão da tragédia humana que provocou e porque aquele dia mudou a cidade para sempre. A Lisboa que conhecemos foi construída sobre uma outra, irremediavelmente perdida. O que nos levou a fazer uma pergunta: e se fosse hoje, estaríamos individual e coletivamente mais bem preparados?", fala Clemente.
O bilhete normal para visitar o Quake custa de 21 euros a 31 euros (R$ 107 a R$ 158). Crianças pagam de 14,50 euros a 21,50 euros (R$ 74 a R$ 110). Adultos maiores de 65 anos também têm entradas diferenciadas, que podem sair de 17 euros a 25 euros (R$ 87 a R$ 128).
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