A pior viagem do mundo passou por 'ilha misteriosa' no Brasil
O ano de 2022 é quando celebramos o centenário da publicação de um dos relatos mais completos (e aterrorizantes) da Idade Heroica da Exploração da Antártica, período de intensas expedições ao continente, entre o final do século XIX e início do XX.
Basta o leitor começar a ler as primeiras páginas para concluir que o título do livro "A Pior Viagem do Mundo" não era nenhum exagero.
A obra foi escrita por Apsley Cherry-Garrard, um dos 65 tripulantes da Expedição Terra Nova (1910-13), liderada pelo explorador inglês Robert Falcon Scott, que tentava ser o primeiro a alcançar o Polo Sul.
O perrengue congelante seria marcado por nevascas que duravam dias, ventos histéricos que levavam barracas para longe, comida regulada (quanto tinha) e caminhadas por territórios traiçoeiros rasgado por fendas profundas.
Sem falar nos oceanos austrais com ondas de dez metros de altura. Para Garrard, aquilo era a versão terrena do inferno, onde o navio chegava a inclinar cinquenta graus para cada lado.
Porém, a pior das notícias, tão dura quanto passar um inverno na Antártica, viria em forma de telegrama, quando o experiente Roald Amundsen enviou da Austrália para Scott um aviso de que aquele norueguês também rumava para o sul.
O líder Scott não se abalou com a concorrência e sugeriu à tripulação que seguisse "sem medo nem pânico", "como se nada tivesse acontecido".
Mas aconteceu. E não foi pouco.
A viagem ficou conhecida como a última expedição de Scott".
Uma passagem pelo Brasil
A bordo do Terra Nova, um lento navio baleeiro de madeira que viajava a vela ou a vapor, parte da tripulação partiu de Londres em 1º de junho de 1910 e seguiu para o oceano Atlântico, passando pelas ilhas dos arquipélagos da Madeira e de Cabo Verde, próximas da costa da África.
Uma das paradas científicas da comitiva foi numa ilha "inabitada, desconhecida e misteriosa" no Brasil.
Trindade é o destino brasileiro habitado mais remoto do país, uma fortaleza rochosa de desembarque complexo que emerge do mar, a 1.140 quilômetros de Vitória, no Espírito Santo.
Foi nessa ilha de origem vulcânica que a tripulação, que também tinha objetivos científicos nas áreas de geologia e biologia, entre outros, recolheu algumas espécies de pássaros, aranhas e insetos para a coleção do Museu Britânico.
Antigo domínio inglês e base estratégica do Brasil nas duas grandes guerras mundiais, Trindade era dominada na época de Scott pelos temidos caranguejos terrestres, "um pesadelo" que espiava com interesse e mordia as botas dos desembarcados.
Mas a Antártica ainda estava muito longe e não havia tempo a perder.
Dali, os tripulantes seguiram para a África do Sul, onde Scott se encontrou com o grupo, após resolver burocracias da expedição, e depois para a Austrália e Nova Zelândia, país em que seriam embarcadas toneladas de provisões como comida, trenós motorizados, cachorros e os 19 pôneis que fariam o transporte das cargas.
Aliás, esses últimos são tidos como um dos erros da expedição, pois não parecia uma boa ideia levar esse tipo de animal em uma jornada como essa.
Perrengues
Se até hoje viagens turísticas para a Antártica são cheias de privações, o que dizer daquele início de século.
Dividida em outras mini expedições com diferentes propósitos, a travessia polar era muitas viagens numa só, como a Expedição da Primavera "um alegre piquenique" sob temperaturas congelantes, literalmente.
Mas a pior delas, a que inspirou o titulo do livro de Garrard, foi a Expedição de Inverno, "a pior do mundo", quando um pequeno grupo saiu carregando 114 quilos cada um para pesquisar a vida em uma colônia de pinguins imperadores, como relata no trecho a seguir:
E assim partimos (?) para realizar a expedição mais estranha de busca de ninhos de aves de que já se ouviu ou se ouvirá falar.
Para ele, morrer era fácil. O difícil era seguir adiante.
Quando a Expedição de Inverno retornou ao Cabo Evans, suas roupas estavam tão congeladas que tiveram de ser cortadas. Como também lembrou Cherry-Garrard em seus diários, algumas chegavam a ficar paradas em pé, de tão duras que estavam.
Em pleno meio-dia, o termômetro batia os -60,5° C e, quando a temperatura subiu para -48° C, Garrard achou que "as coisas estavam melhorando".
Não estavam.
Num continente em que dia e noite se confundem e o meio-dia parece meia-noite, durante o inverno, os exploradores não podiam ver um palmo à frente enquanto se deslocavam.
Focas e pinguins, quando davam as caras, serviam de comida; a água doce disponível era a chuva; e os banhos de mar, "sabão de água salgada", como definiu um dos viajantes.
Entre um acampamento e outro, cabanas eram montadas para abrigar os exploradores, cujo isolamento era feito com algas marinhas e até lixo deixado por expedições antárticas anteriores.
Nos raros jantares com mais fartura, o cardápio tinha paçoca de carne-seca, gengibre cristalizado e? carne de pôneis, sacrificados para também alimentar os cachorros.
Na medida do possível, a expedição era registrada pelo fotógrafo Herbert Ponting, que contava com uma sala escura em um dos acampamentos da expedição.
Um dos momentos mais dramáticos registrados, na Ilha Ross, foi quando esse inglês foi cercado por um grupo de baleias orcas, que precisou sair saltando placas de gelo para não ser devorado por aqueles estratégicos animais.
Ponting ficaria conhecido como o primeiro a usar uma câmera portátil na Antártica.
Rumo ao Polo Sul
A viagem principal da expedição, a que chegaria ao Polo Sul, começou no dia 24 de outubro de 1911 e era liderada por Scott, acompanhado de cachorros e outros quatro homens.
Pouco tempo depois, os pôneis que carregavam mantimentos teriam que ser sacrificados, por conta do enfraquecimento pela falta de comida e excesso de trabalho. Os trenós motorizados também seriam abandonados, provavelmente, pela evaporação de combustível.
Ainda assim, Scott escreveria em seu diário um esperançoso:
"Acho que vai dar tudo certo".
Infelizmente, daquela vez, o líder estava errado.
Scott e seus homens atingiram o Polo Sul no dia 17 de janeiro de 1912 para descobrirem que o norueguês Amundsen havia chegado ao ponto mais meridional do planeta, no dia 14 de dezembro do ano anterior.
Além disso, a pequena comitiva da Expedição Polar, formada por Scott, Wilson, Bowers, Oates e o marinheiro Evans, seria surpreendida pelo cansaço, fome e também pela fúria do clima antártico.
Os três corpos congelados só seriam encontrados pela Expedição de Busca, dentro de uma barraca, menos de um ano depois, a quase 11 milhas (cerca de 18 quilômetros) de distância de um dos acampamentos.
Já Evans, que entrara em coma aos pés da geleira Beardmore, e Oates, que dera uma "saidinha" no gelo para desaparecer para sempre, nunca foram encontrados.
O navio de resgate da expedição chegou na Nova Zelândia em fevereiro de 1913. Porém, antes de partirem, os sobreviventes ergueram uma cruz feita com madeira de eucalipto no topo da Observation Hill, próximo ao Mar de Ross.
"Pelo amor de Deus, cuidem de nossa gente", teriam sido as últimas palavras escritas por Scott.
Depois dele, a Antártica só veria o feito ser repetido quase meio século depois, em outubro de 1958.
Saiba mais sobre a 'pior viagem do mundo'
"A pior viagem do mundo"
Livro de Apsley Cherry-Garrard (tradução: Rosaura Eichenberg)
Esse livro com breve prefácio de Amir Klink é o relato detalhado da última expedição de Scott à Antártica, escrito por um dos tripulantes.
Companhia das Letras
"Amundsen, o Explorador"
Produção norueguesa que dramatiza a vida de Roald Amundsen, explorador que chegou ao Polo Sul, dias antes de Scott.
Streaming disponível em HBO Max.
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