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Nas mãos de mulheres, produção de cervejas ajudou a colonizar os EUA

Mulher compartilha sua produção de cerveja (ilustração do século 19) - Universal History Archive/Universal Images Group via Getty Images
Mulher compartilha sua produção de cerveja (ilustração do século 19)
Imagem: Universal History Archive/Universal Images Group via Getty Images

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

29/09/2022 04h00

A vida dos colonos de Jamestown, a primeira cidade inglesa fundada na América do Norte, não era nada fácil. Desde 1607, as pessoas viviam à base de uma dieta em que chá e café eram artigos raros. Leite requeria manter uma vaca, logo não era muito acessível.

Um espião espanhol reportou que eram 300 pessoas esquálidas sobrevivendo às custas de pão de milho com peixe sem nada para beber além de água, "o que é contrário à natureza dos ingleses". Fora que a água muitas vezes estava contaminada, a ponto de haver placas proibitivas nas fontes, com o aviso: "Morte para aquele que beber muito rápido".

A salvação veio quando eles descobriram que podiam produzir tabaco. Graças à exportação de fumo, navios carregados de vinho das ilhas da Madeira e Canárias e cerveja inglesa supriam as necessidades dos colonos.

Mas era um abastecimento irregular e insuficiente. Faltavam matérias-primas e conhecimento para produzir localmente.

Cerveja foi salvação

A solução encontrada pelos habitantes do assentamento, hoje no estado americano da Virgínia, foi convocar mulheres. Ou melhor: mulheres com talentos na arte de fazer cerveja.

"Misturando uma receita de milhos", diz a ilustração - Guildhall Library & Art Gallery/Heritage Images/Getty Images - Guildhall Library & Art Gallery/Heritage Images/Getty Images
"Misturando uma receita de milhos", diz a ilustração
Imagem: Guildhall Library & Art Gallery/Heritage Images/Getty Images

Além de melhorar um bocado as condições de vida precárias, elas poderiam, esperava-se, criar vínculos, constituir famílias e aumentar a população de uma colônia ainda frágil.

Em 1621, 57 mulheres adentraram a baía de Chesapeake para dar início à mais jovem das grandes culturas cervejeiras do mundo. Vinham de famílias com recursos, para dizer o mínimo: algumas eram filhas de nobres, parentes de cavaleiros reais. Muitas eram jovens viúvas ou órfãs, outras simplesmente estavam a fim de uma aventura.

Todas dominavam um ofício que os homens desconheciam.

Ofício feminino

Não que fosse uma excentricidade da Inglaterra. Fermentar e destilar eram consideradas atividades femininas em muitas sociedades. Em termos culturais, fazer cerveja não era muito diferente de fazer pão. Um trabalho doméstico, que só veria mãos masculinas tempos depois, quando começou a ser profissionalizado e, consequentemente, a envolver dinheiro.

Mulheres produzindo cerveja em Burton-On-Trent,na Inglaterra - Print Collector/Getty Images - Print Collector/Getty Images
Mulheres produzindo cerveja em Burton-On-Trent,na Inglaterra
Imagem: Print Collector/Getty Images

"No final do século 18, os homens compartilhavam as tarefas de produção de álcool trocando ideias, ingredientes, ferramentas e bebidas. Historiadores que estudaram a masculinização de outras formas de trabalho, como partos de bebês e produção de laticínios, concluíram que os homens assumiram essas arenas por causa da misoginia ou da ansiedade", explica a historiadora Sarah Meachan em "Every Home a Distillery" ("Cada lar uma destilaria", sem edição brasileira), livro sobre álcool e gênero na Chesapeake colonial.

Para a autora, além desses fatores, o encolhimento do papel das mulheres no álcool envolveu também um "entusiasmo dos homens pelas novas formas científicas de produção, o aumento da população e as exigências de fornecimento de bebidas alcoólicas ao Exército durante a Revolução Americana".

Mas, no século 17, ainda se tratava de uma atividade feminina. Na Inglaterra, mulheres faziam cerveja, sidra, hidromel, uísque e conhaque em suas cozinhas, para o consumo de homens (e crianças) em casa.

Bebida de "comer"

Família cervejeira em 1900 - H. Armstrong Roberts/ClassicStock/Getty Images - H. Armstrong Roberts/ClassicStock/Getty Images
Família cervejeira em 1900
Imagem: H. Armstrong Roberts/ClassicStock/Getty Images

A relação com o álcool na Europa era um tanto diferente de hoje em dia. Bebidas eram vistas também como alimento nutritivo. E, em um tempo em que a água nos centros urbanos vivia contaminada, era mais seguro beber algo que envolve fervura na produção do que se arriscar em uma fonte qualquer na rua.

Importar a mão de obra resolvia só parte do problema. Em 1656, o viajante inglês John Hammond reclamou que naquela "colônia de bebedores de água" as poucas donas de casa não produziam álcool suficiente. É evidente. Elas não tinham como cultivar trigo ou lúpulo, as maçãs disponíveis eram diferentes (gerando sidras diferentes) e alambiques eram grandes e caros.

A solução era se adaptar. As mulheres substituíram o lúpulo por essência de abeto para cumprir a função de conservante natural e dar amargor. No lugar da cevada, milho, melado, abóbora, gengibre, sálvia, centeio e até caqui eram ingredientes comuns.

Produção de lúpulo na Alemanha, no começo do século 20 - Carl Simon/United Archives/Universal Images Group via Getty Images - Carl Simon/United Archives/Universal Images Group via Getty Images
Produção de lúpulo na Alemanha, no começo do século 20
Imagem: Carl Simon/United Archives/Universal Images Group via Getty Images

No século seguinte, com mais mulheres e mais trabalhadores escravizados, a produção já abastecia os Estados Unidos em níveis semelhantes aos porres europeus.

Segundo Meachan, em 1770, um homem branco bebia, em média, sete doses de rum por dia — rum era o destilado preferido naquela época e serviu, inclusive, de motor etílico na luta pela independência, em 1776. Já as mulheres consumiam mais de um litro de sidra diariamente, em média.

Uma produção em larga escala, menos intermitente e irregular significava uma produção menos caseira. Ou seja, os homens estavam assumindo a atividade, cada vez mais comercial.

Volta ao passado

Cervejeira produz a bebida - Jenna Eason/Charlotte Observer/Tribune News Service via Getty Images - Jenna Eason/Charlotte Observer/Tribune News Service via Getty Images
Cervejeira produz a bebida
Imagem: Jenna Eason/Charlotte Observer/Tribune News Service via Getty Images

As receitas daquelas mulheres pioneiras se perderam. Felizmente, algumas cervejarias contemporâneas resgataram essas antigas tradições. Hoje, você pode encontrar à venda, por exemplo, rótulos do estilo spruce beer, feitos com brotos ou essência de abeto (árvore da mesma família dos pinheiros).

É um exemplo, também, de que as mulheres cervejeiras não trabalhavam sozinhas. Usar abeto como ingrediente foi um ensinamento indígena. Alguns povos da América do Norte tinham na árvore uma fonte confiável de vitamina C para combater o escorbuto.

Receita de Spruce Beer

De Amelia Simmons, no livro "American Cookery" (1796)

"Pegue quatro onças [8 colheres de sopa] de lúpulo, deixe ferver meia hora em um galão [4 litros] de água, coe a água do lúpulo e adicione dezesseis galões [60 litros] de água morna, dois galões [7,5 litros] de melaço, oito onças [16 colheres de sopa] de essência de abeto, dissolvido em um litro de água, coloque em um barril limpo, em seguida, agite bem, adicione meio pint [1 xícara] de leveduras, depois deixe descansar e trabalhe uma semana, se o tempo estiver muito quente, menos tempo, quando for retirado para a garrafa, adicione uma colher de melaço a cada garrafa."

No Brasil

Já se bebia cerveja desde muito antes da chegada dos primeiros europeus. Não a cerveja maltada que conhecemos, feita a partir da fermentação de grãos germinados, mas uma insalivada, em que as enzimas presentes naturalmente na saliva induzem o processo de fermentação.

O cauim, feito em geral por meio da mastigação e salivação da mandioca, estava em todos os eventos e rituais indígenas. De novo, quem comandava a produção eram as mulheres.

Preparo do cauim, em gravura de Ferdinand Denis, de 1837 - Firmin Didot Freres - Firmin Didot Freres
Preparo do cauim, em gravura de Ferdinand Denis, de 1837
Imagem: Firmin Didot Freres

Quanto à cerveja produzida nos moldes europeus, ela demorou um bocado para chegar. Diferentemente dos Estados Unidos, colonizados por um povo cervejeiro, o Brasil foi dominado por um país do vinho.

No século 16, portugueses que quisessem beber cerveja até conseguiam, mas somente as importadas, que chegavam nos portos de Lisboa e Porto, vindo do norte do continente. Não existia uma produção nacional de cerveja.

Ainda assim, ela causava. Em 1689, a Câmara de Lisboa limitou a venda da bebida. Isso porque o vinho português enfrentava a concorrência dos franceses e espanhóis, e também da cerveja, mais barata, chamada de "água choca" pelos vinicultores enfurecidos, explica António Leite da Costa em "História de Portugal" (Leya).

Por isso, os europeus que introduziram a produção de cerveja no Brasil não foram os portugueses, mas os holandeses. Durante o governo de Maurício de Nassau em Pernambuco, Dirck Dicx, membro de uma tradicional família cervejeira da cidade de Haarlem, desembarcou no Recife em 1640 para instalar uma fábrica.

Mapa que celebra o domínio holandês sobre Olinda, em Pernambuco (1630) - Nicolaes Visscher/Barry Lawrence Ruderman Antique Maps - Nicolaes Visscher/Barry Lawrence Ruderman Antique Maps
Mapa que celebra o domínio holandês sobre Olinda, em Pernambuco (1630)
Imagem: Nicolaes Visscher/Barry Lawrence Ruderman Antique Maps

"Se somarmos as dificuldades enfrentadas para o abastecimento na colônia, a vasta produção de açúcar no nordeste brasileiro, a experiência de um mestre cervejeiro como Dicx e a tradição de cervejas na Holanda do século 17, talvez a primeira cerveja brasileira tenha contido uma quantidade de malte de trigo e algum açúcar para facilitar a fermentação", explicam a cientista política Tatiana Rotolo e o geógrafo Eduardo Marcusso em um artigo publicado na revista "Contextos da Alimentação", do Senac. Era, segundo relatos, uma "cerveja forte".

O experimento não deu muito certo. Segundo os autores, a falta de matérias-primas e a dificuldade de abastecimento de insumos decretaram o fim da cervejaria.

Diferentemente dos portugueses, que assimilaram as formas indígenas de lidar com a terra, os holandeses tiveram dificuldades em se adaptar. Tentavam manter a mesma dieta que tinham nos Países Baixos e acabavam se frustrando e se revoltando com a falta de trigo e outros produtos.

Se fizessem como as pioneiras americanas e usassem ingredientes que tivessem à mão, talvez a fábrica teria durado mais tempo. A produção comercial de cerveja só começou no Brasil no século 19.