Como 1º restaurante fora da colônia popularizou a comida japonesa no Brasil
Houve um tempo em que sushi não existia em churrascaria, tempurá era algo "alienígena" e temaki (com ou sem cream cheese), quase ficção científica. Tempo em que a comida japonesa autocentrava-se apenas na própria comunidade e em um único CEP: o bairro da Liberdade, onde muitos dos emigrados ao Brasil que não rumaram para o interior estabeleceram-se, na capital paulista. Nos anos 1960, era assim.
Inaugurado em 1974 em uma pequena galeria quase no cruzamento da avenida Paulista com a Brigadeiro Luís Antônio, o Sushiguen desde sempre chamava a atenção do vai-e-vem da região: praticamente ninguém entendia o que aquela portinha misteriosa continha em seu interior, muito menos o significado da placa de madeira grafada com estranhos caracteres.
À época, foi um endereço pioneiro fora da Liberdade dedicado à cozinha japonesa. Caminhando para celebrar 50 anos, a casa, icônica no gênero, renova-se, reformada, após sobreviver à pandemia.
"Se formos tentar traduzir, o nome é uma brincadeira, um duplo sentido referindo-se a uma lenda japonesa sobre a luta entre um clã gigante e poderoso e um outro menor. Tipo Davi e Golias", explica o empresário Julio Shimizu, atual sócio-proprietário, sobrinho do fundador, Mitsuaki Shimizu (1946-2017).
A seu lado no comando, seus primos, os irmãos Lincoln e Takeshi Shimizu, respectivamente responsável pela cozinha "quente" e sushiman (ou sushi chef, como ele prefere).
"Quando abriu o restaurante, Mitsuaki Shimizu pensou no nome como uma metáfora divertida para abri-lo fora da Liberdade, que concentrava todos os restaurantes japoneses da época".
Os fartos anos 80
Nos primeiros anos, a freguesia constituiu-se basicamente de empresários japoneses que moravam no Brasil, empregados das muitas multinacionais nipônicas com escritórios na região da avenida Paulista.
O panorama só começou a abrasileirar-se nos anos 80.
Foi quando as pessoas começaram a se interessar em conhecer a comida japonesa, por conta de seu sucesso nos Estados Unidos e na Europa, que repercutia na imprensa aqui", avalia Julio.
"Também aconteceu de executivos brasileiros que viajavam muito ao exterior e que, na volta, queriam comer o que haviam provado fora do país". O retorno progressivo de algumas multinacionais para a Terra do Sol Nascente igualmente contribuiu para o começo da troca de guarda da clientela.
Alguns clássicos dessa época ainda constam do cardápio. Casos, por exemplo, do futomaki (versão enrolada e grossa do sushi normal), o yakisoba e principalmente o tirashizushi, irresistível repasto servido em um bowl (em alguns casos, caixa) de laca, com o pescado por cima de quantidade expressiva de arroz, que acabou adotado pelos clientes como o "prato da casa".
"Eram porções bem generosas, nos primeiros tempos vinham muitas famílias numerosas ao restaurante. O yakisoba era gigante", recorda Julio.
Se sobravam fartas porções, nem sempre era fácil conseguir ingredientes top — pescados, por exemplo. Datam desse período histórias do tio/pai Mitsuaki Shimizu desembarcando do Japão com excesso de bagagem: malas e isopores carregados de insumos, às vezes ainda com gelo, ajeitados a seguir em um furgão já à sua espera.
Culinária nipo-brasileira
Ao longo do tempo, o Sushiguen firmou-se como um dos baluartes do incrível boom da mesa nikkei fora da colônia. Empresários (brasileiros), artistas, políticos de renome: cabia tudo no pot pourri de, vá lá, notáveis que, no correr dos anos, passaria a frequentá-lo. A própria galeria que ainda hoje o hospeda recebeu outros restaurantes de "patrícios".
Além de "formar" o público — desde os anos 90, uma maioria de "brasileiros" —, educando-o nos sabores e até na liturgia japonesa à mesa, a casa legou gerações de sushimen de destaque que, após anos no balcão dos Shimizu, tocaram projetos próprios de sucesso na cidade (Nakombi, Kosushi, etc.)
"Nós tivemos uma geração de mestres a nos inspirar: nossos pais e tios", enaltece Julio.
Mestres mesmo! E como a comunidade era pequena, e eles eram os donos de seus restaurantes, eram todos amigos. Quando não estavam trabalhando, andavam em turma, saiam sempre juntos para beber, e até criaram algumas das primeiras associações japonesas atuando pela comunidade".
Entre a tradição e os novos tempos
Ele e os primos Lincoln e Takeshi colocam-se hoje como uma geração "de transição". Mais informados, adeptos das novas técnicas em constante renovação no Japão, equilibram-se entre o clássico e o autoral.
Também têm a vantagem da multiplicidade de ingredientes — pescados e moluscos de diferentes águas do planeta, por exemplo — que não existia no passado. Mas sabem-se menos "raiz" que seus antecessores. "Isso é algo que não pode se perder", crava Lincoln.
Os mais velhos têm que ensinar aos mais novos, e assim vamos agregando e evoluindo. Hoje temos mais liberdade para criar, mas é importante não perder de vista a essência do prato. Usar as técnicas atuais, mas mantendo a tradição".
Tradição que, até a pandemia, levava ao restaurante gerações de clientes, às vezes, do bisavô ao bisneto. A atual reforma foi a primeira em décadas. "Já que fechamos por conta da pandemia, era a hora de fazer. E do zero, demolindo quase tudo. Mantivemos o layout japonês do antigo, mas com toques mais modernos. E também demos uma atualizada no cardápio", adianta Julio Shimizu.
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